Quando os jornalistas são impedidos de exercer a cidadania
‘E que desde que não fale, no que escrevo, nem das autoridades, nem da religião, nem da política, nem da moral, nem de quem ocupa altos cargos, nem dos sacrossantos, nem da ópera, nem dos outros espetáculos, nem de ninguém que tenha nada a ver com coisa nenhuma, posso imprimir livremente tudo o que quero, desde que inspecionado por dois ou três censores.’ (Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais, 1732-1799)
Beaumarchais haveria de sorrir ao perceber que sua fina ironia, personificada na figura do desventurado Figaro, ácido crítico do poder absolutista na França pré-revolucionária do século 18, atravessou os tempos e caberia perfeitamente ao funcionário da TV Globo – jornalista, artista ou outro profissional – que ousasse tal interpretação ao ler o comunicado da empresa, publicado na semana passada:
‘A divulgação e/ou comentários sobre temas/informações direta ou indiretamente relacionados às atividades ligadas à Rede Globo; ao mercado de mídia e ao nosso ambiente regulatório, ou qualquer outra informação/conteúdo obtidos em razão do relacionamento com a Rede Globo são vedados, independentemente da plataforma adotada, salvo expressamente autorizada pela empresa.’
Mais:
‘A hospedagem em portais ou outros sites, bem como a associação do nome, imagem ou voz dos contratados da Rede Globo a quaisquer veículos de comunicação que explorem as mídias sociais, ainda que o conteúdo disponibilizado seja pessoal, só poderá acontecer com prévia autorização formal da empresa.’
O jornalista da Folha de S.Paulo não ficaria atrás, diante de comunicado semelhante veiculado no mesmo dia:
‘Os profissionais que mantêm blogs ou são participantes de redes sociais e/ou do twitter devem lembrar que:
‘a) representam a Folha nessas plataformas, portanto devem sempre seguir os princípios do projeto editorial, evitando assumir campanhas e posicionamentos partidários;
‘b) não devem colocar na rede os conteúdos de colunas e reportagens exclusivas. Esses são reservados apenas para os leitores da Folha e assinantes do UOL. Eventualmente blogs podem fazer rápida menção para texto publicado no jornal, com remissão para a versão eletrônica da Folha.’
Controle sobre a vida
Não se trata de discutir aqui o direito das empresas sobre material produzido por seus funcionários. O problema é o controle que pretendem exercer sobre a vida dessas pessoas: uma relação de poder que extrapola os vínculos empregatícios, quando se considera que o profissional representa a empresa mesmo em atividades fora de sua relação de trabalho, estendendo-se as restrições à participação deles na vida pública.
Trata-se de uma norma que, segundo informa o jornalista José Roberto de Toledo em seu blog, vem sendo adotada pelos principais jornais, agências e emissoras americanos – New York Times, Washington Post, Wall Street Journal, Associated Press, Los Angeles Times, Bloomberg e ESPN.
A propósito da atitude da Folha, o ombudsman, Carlos Eduardo Lins da Silva, comentou em sua coluna de domingo (13/9):
‘O comunicado deixa abertas várias possíveis dúvidas. (…) acho certo exigir que nos temas que cobrem seus contratados mantenham em outros veículos (inclusive os pessoais) padrões exigidos no espaço do próprio jornal.
‘Se, por exemplo, um jornalista que cuida de política veicula em seu blog opiniões apaixonadamente pró ou contra um partido ou pessoa pública, de que modo o leitor vai confiar na isenção do que ele reportar na Folha?
‘Mas como exercer controle sobre o que ele diz sobre temas que não são os de que trata no jornal sem interferir na sua liberdade de expressão?’
Combater a hipocrisia
Não se trata de um tema fácil, exatamente porque o exercício do jornalismo está ancorado numa antiga crença na separação entre informação e opinião, que decorre de uma tradição ancestral, platônica, de condenação da doxa (a opinião, sempre questionável) em nome da verdade (no caso, os fatos). A tradução simplificada dessa tensão filosófica é a corriqueira afirmação de que ‘contra fatos não há argumentos’, quando, a rigor, só há argumentos porque questionamos os fatos, isto é, a interpretação predominante (naturalizada) desses fatos.
Sempre será importante ressaltar que não há opinião sem fatos, nem o contrário – ou seja, que todo fato só poderá vir a público acompanhado de uma interpretação. Porém – e por isso o ombudsman tem razão ao indagar sobre as consequências da exposição das opiniões do jornalista – o público está acostumado a pensar por essa lógica binária e excludente, que os próprios jornais – e as teorias do jornalismo tradicionais – reforçam, ao insistirem na separação estrita entre espaços noticiosos e opinativos.
Qualquer projeto editorial, não apenas os das grandes empresas, precisa levar em conta as expectativas do público para obter sucesso. Aliás, especialmente os projetos contra-hegemônicos precisariam lidar com isso adequadamente, para pensar em ultrapassar os limites de sua própria audiência, do contrário estarão condenados a se manter no círculo vicioso de pregar para convertidos.
Porém, é urgente enfrentar essa falácia que separa fatos de opiniões. Sobretudo porque, se o jornalismo está historicamente comprometido com o esclarecimento dos cidadãos, conviria esclarecer que essa aparência de isenção não passa de hipocrisia: porque, de fato, o jornalista tem opiniões e inevitavelmente as expressa de múltiplas formas, na maneira pela qual orienta seu discurso. Seria preciso esclarecer o público, portanto, que o fato de emitir opinião não deveria ser visto negativamente, como se, por isso, o jornalista não fosse capaz de acolher opiniões contrárias. Assumir a própria opinião ou a defesa de uma causa é uma questão de honestidade.
Não se pode ignorar, evidentemente, os riscos que corremos no contexto atual, especialmente às vésperas de uma campanha presidencial, tendo em conta a radicalização de posições e o sectarismo que toma conta do debate, sobretudo no meio virtual, em blogs de política e nos espaços de comentários como o deste Observatório. Quanto esforço seria necessário para convencer – ou confrontar, ou neutralizar – as tropas de choque organizadas dos partidos envolvidos na disputa, que raramente se apresentam como tais, mas como simples indivíduos autônomos movidos pela defesa do interesse público, embora o discurso recorrente não lhes negue a origem?
Pensando pragmaticamente, uma possibilidade seria apontar a separação entre o que é factualmente comprovável e o que é juízo de valor. Porém, se não caminharmos no sentido do esclarecimento de que a defesa de uma causa ou um princípio não equivale a proselitismo e, pelo contrário, está na base do confronto franco de idéias, aquilo que costumamos chamar de ‘debate democrático’ continuará a se basear numa ficção, e, por isso mesmo, continuará a ser desvirtuado.
Abrir mão da cidadania
O mais grave, no entanto, é que os comunicados da Globo e Folha – e seus inspiradores americanos – implicam um contra-senso: embora deva estimular a participação dos cidadãos na vida pública – o que, aliás, é uma defesa de causa, que não aparece como tal por ser consensualmente aceita –, o jornalista é excluído dela, pelos seus compromissos com os (supostos) princípios de isenção jornalística. Bem a propósito, um debate proposto pela ombudsman da NPR – National Public Radio (uma produtora nacional de programas para rádios públicas nos EUA), Lisa Shepard, sobre a participação de um jornalista da casa em uma parada gay (ver aqui), demonstra o dilema que se enfrenta. No limite, teremos como regra o que um ex-diretor de informação da RTP, a televisão pública de Portugal, então um jovem jornalista, declarou com orgulho há alguns anos: que nem sequer votava, para evitar comprometer sua isenção como profissional.
Significa dizer: para ser jornalista, é preciso deixar de exercer os direitos de cidadania. Isso em plena era de glorificação do ‘jornalismo-cidadão’, aliás uma mistificação que já tive oportunidade de apontar em outros artigos.
Enquanto não enfrentarmos essa questão, ficaremos com o pobre Figaro de Beaumarchais: para gozar da doce liberdade de ter opinião mas não poder declará-la, ele decide abrir um periódico chamado, exatamente, Jornal Inútil. Para quê? Logo se abate sobre ele uma multidão de pobres diabos que o acusam de lhes roubar o ganha-pão – afinal, também editavam jornais, todos eles inúteis… e ei-lo, novamente, desempregado.
Na era da internet, retornar a esses tempos pré-iluministas seria o cúmulo do anacronismo.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)