‘Eu quero ser a mão do povo desenhando.’ Há 22 anos, o autor desta ilustre frase, tão ligado ao sofrimento do povo e às causas políticas e sociais, abandonou o Brasil. Mas não por vontade própria. Vítima de uma transfusão de sangue contaminado com o vírus HIV, Henrique de Souza Filho, o Henfil, faleceu, deixando, mais que saudade, uma lacuna na luta contra a corrupção e a censura.
O tempo mudou. O cenário político é outro, mas a sociedade ainda contempla os mesmos males antes combatidos por Henfil. Foi desenhando que o cartunista levou reflexão e crítica ao povo, apresentando a realidade encoberta pela sombra dos censores e torturadores do regime militar.
De família humilde, porém que prezava a educação, Henfil foi um dos filhos a se destacar por sua atuação engajada, assim como o irmão Herbert José (Betinho), sociólogo e ativista político. A história do desenhista é ricamente narrada por Márcio Malta, o Nico, na obra Henfil – O humor subversivo (Editora Expressão Popular, 2008). Por meio de entrevistas concedidas pelo cartunista, assim como relatos de amigos que acompanharam a trajetória de Henfil, Nico concede aos leitores a oportunidade única de conhecer o lado frágil e revolucionário do ‘guerrilheiro do cartum’, segundo as palavras do cartunista Miguel Paiva.
Pautada quase exclusivamente pela ditadura militar vigente no Brasil, a vida profissional de Henfil marcou os profissionais da área, por uma crítica inteligente e que possibilitou a liberdade de opinião a uma sociedade por vezes alienada. Quando não estava desenhando, Henfil contribuía com ajuda financeira e emocional os militantes, as instituições e as famílias perseguidas pelo duro regime. O cartunista se valia de sua frágil posição como portador da hemofilia para agir em prol daqueles que precisavam. A doença, que compromete a coagulação sanguínea e impossibilita o controle de eventuais sangramentos, era outro mal combatido de forma particular pelo cartunista.
Conceito de engajamento
Mas nem a sua delicada condição de saúde, tampouco as ameaças anônimas que recebeu inúmeras vezes amedrontaram o corajoso desenhista. Por meio de seus combatentes, os personagens que criou, Henfil usava da inteligência e perspicácia dos leitores para passar sua mensagem adiante. Os fradinhos Cumprido e Baixinho, o Cabôco Mamadô e seu cemitério de vivos, a turma do alto da caatinga e o paranoico Ubaldo foram algumas das armas utilizadas por ele para combater o mal que assolava o país à época. Cartas endereçadas à mãe, Dona Maria da Conceição, e publicadas na IstoÉ quando de sua passagem pela revista nos idos das décadas de 1970 e 1980, eram outra maneira encontrada pelo cartunista para enviar mensagens à população sobre os problemas da esfera política e social. Meios inteligentes para driblar a feroz censura imposta aos meios de comunicação.
Responsável por batizar o movimento das ‘Diretas Já!’, Henfil teve uma importante participação nesta nova fase política do Brasil, envolvendo-se em comícios, arrecadação de fundos, elaboração de material de propaganda, dentre outras ações. Tinha como missão fomentar o engajamento e não só deixar as reclamações no papel. Na obra de Malta, uma citação de Henfil deixa bem claro suas atitudes: ‘A chave para você fazer humor engajado, é você estar engajado. Não há chance de você ficar na sua casa vendo os engajamentos lá fora, e conseguir fazer algo.’
Manter a chama viva
Além de adotar o lápis como arma, Henfil também era diretor, ator e roteirista de filmes, peças de teatro, livros e programas de TV. Em 1988, o cartunista lançou o filme Tanga – deu no New York Times?, uma sátira ao papel da grande imprensa na criação de fatos irreais, porém apresentados como verdade ao público. Henfil era contra o papel generalista dos meios de comunicação que, segundo ele (e apontado por Márcio Malta em seu livro), deveriam servir aos anseios do povo. ‘Se você trabalha numa concessão pública, (…) não pode ficar falando de esquis, jogos de tênis ou problemas pessoais, quando tem gente literalmente morrendo de fome.’
Passando os últimos anos de vida na cidade que o lançou ao sucesso, o Rio de Janeiro, Henfil ‘morreu de Brasil’, segundo as palavras do amigo Tárik de Souza. Devido à falta de controle dos hospitais públicos sobre os doadores à época, não só ele como mais dois irmãos seus também contraíram Aids durante as transfusões de sangue, agravando ainda mais seu delicado estado de saúde. Em 4 de janeiro de 1988, com apenas 43 anos de idade, o revolucionário cartunista deixou dor aos familiares, amigos e uma multidão de admiradores de sua arte.
Com o filho, Ivan Consenza de Souza, ficou a esperança de perpetuar e divulgar os originais guardados pelo cartunista. Herdeiro de um acervo com mais de 15 mil desenhos originais, Ivan divulga o trabalho do pai em mostras, exposições e publicação em jornais. Um modo de manter viva a chama de combate às mazelas que insistem em macular a democracia e liberdade de opinião, obtidas com muito suor e sangue.
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Jornalista, Florianópolis, SC