Os jornalistas de Libération fizeram na semana passada uma edição histórica num genial exercício do que os franceses chamam de ‘autodérision’ (auto-zombaria). Na quarta-feira (18/11) à noite, a seleção francesa de futebol ganhou da Irlanda no Stade de France, em Paris, e se classificou para a Copa do Mundo. Uma vitória de 1 a zero, arrancada a fórceps. Ou melhor, arrancada pela mão esquerda de Thierry Henry, o capitão da seleção francesa, numa falta providencial que escapou ao juiz sueco Martin Hansson, mas não aos jogadores irlandeses e a todos os espectadores do jogo, em casa ou no estádio.
O jornal poderia ter feito uma cobertura correta, defendendo a ética no futebol, lamentando a classificação marota. Mas Libération foi mais longe.
Longe de qualquer chauvinismo, os jornalistas de Libération fizeram da edição de sexta-feira (20/11) um jornal para ser guardado preciosamente por quem se interessa por jornalismo e pelo trabalho de edição de um jornal em papel. A começar pela capa, totalmente ocupada pela foto da mão ‘milagrosa’ de Thierry Henry e fugindo à paginação do novo projeto gráfico, que reúne na ‘primeira’ ao menos cinco chamadas variadas, com fotos, dos principais assuntos.
O título, dentro da tradição do Libé de fazer jogos de palavras, que muitas vezes tornam difícil a compreensão a quem não domina o francês coloquial, dizia: ‘C´est pas le pied’. A mão de Henry não é o pé, com o qual se deve jogar futebol, evidentemente. Mas a expressão também significa algo que não é legal, não é uma boa coisa. Logo, a mão ‘c´est pas le pied’, não é legal.
A melhor seleção
Na edição que o talento dos jornalistas comandados por Laurent Joffrin tornou digna de colecionadores, havia mãos da primeira à última página, em todas as matérias. No lugar da foto jornalística dos personagens, apenas a mão ou as mãos dos mesmos, sem o rosto. Até a matéria da correspondente no Brasil, Chantal Rayes, sobre a votação do Supremo Tribunal Federal brasileiro pela extradição de Cesare Battisti tinha apenas a mão do presidente. O título dizia: ‘Lula, dernier recours de Battisti’. Em vez do rosto, a mão de Lula com quatro dedos.
Crítico, o diretor de redação do jornal assinou o texto curto da capa que dava o tom da edição. Nele, Laurent Joffrin sonha com um mundo ideal no qual um jogador que comete uma falta não vista pelo juiz se denuncia. Neste caso, o juiz anularia o gol, feito com a ajuda da mão salvadora, e o jogo continuaria, com a vitória da melhor seleção que, no caso em questão, não era a francesa. Joffrin sonha, ainda, com uma idéia menos cínica e chauvinista do futebol.
Gol de placa
Na página 4, a última das três dedicadas ao assunto e na qual os entrevistados debatem a possibilidade de refazer o jogo de classificação França vs. Irlanda – e o que pode ser feito para evitar esse tipo de erro no futuro – o jornal contou o making-of da edição que, aparentemente, causou muito prazer aos jornalistas.
A Redação ficou dividida entre os indignados defensores da ética, que viam no resultado uma desonra, porque ‘roubado’, e os fatalistas que diziam que futebol é isso mesmo: ou o juiz vê a falta e marca ou não vê e nada acontece.
O making-of tem o título de ‘Terceiro tempo no Libé‘.
O jornal marcou um gol.
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Jornalista