Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A marcha da insensatez conservadora

Ao fazer um discurso no plenário do Senado na terça-feira (27/3), o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) mostrou, involuntariamente, como parcela da imprensa está influenciando o comportamento da oposição no segundo mandato do presidente Lula. Ou como pauta e pautados estão se confundindo na mistura de papéis. Uma simbiose que merece a atenção tanto de biólogos quanto de analistas políticos.

Denunciando que uma empresa fictícia estaria empenhada em privatizar a Amazônia, o político amazonense sequer se preocupou em checar, com seus assessores, a procedência da informação. Resultado: ‘pagou’, como ele mesmo reconhece, ‘um micão no plenário’. A empresa não existe. É um jogo elaborado por um fabricante de guaraná para internautas. O objetivo consiste em descobrir quem estaria tentando roubar a fórmula secreta do produto…

O mais curioso é que a agência de notícias que teria publicado a suposta notícia também é fictícia. O laboratório Arkhos Biotech, que estaria conclamando, por intermédio de um sítio, pessoas do mundo inteiro a comprar a Amazônia, não passa de uma piada de 1º de abril antecipado. Por alguns minutos uma nova batalha de Itararé se deslocou para a vastidão amazônica.

Guerra aberta ao governo

Em maio de 2001, a revista Veja caiu numa pegadinha do mundo editorial. Naquele ano, a Editora Unesp publicou o livro A vida sexual de Immanuel Kant, de autoria de um filósofo francês, Jean-Baptiste Botul. Seria a reprodução de conferências proferidas pelo filósofo na cidade paraguaia de Nueva Könisberg. A tese do obscuro intelectual era demonstrar que a chave para a compreensão da obra kantiana, principalmente dos conceitos contidos em A crítica da razão pura, estaria na inapetência sexual do pensador alemão.

Pois bem: tanto as conferências, como o lugarejo e Botul não passavam de uma brincadeira de intelectuais franceses, entediados com a presunção dos seus pares. Veja, que fez uma alentada resenha do texto, mesmo diante da confirmação de Frédéric Pagès, autor da apresentação do livro, de que tudo era pura invenção, portou-se como mulher que vive gravidez psicológica: defendeu, como pôde, a ‘barriga’.

A publicação da Abril já havia sido vítima de outro, digamos, gracejo… Em 1983, a revista inglesa New Science inventou e fez circular a notícia de que a fusão de células vegetais e animais havia criado uma linha de tomates que iria permitir colher, no fruto, algo semelhante a um filé ao molho de tomates. Veja, sempre ela, não só comprou a pegadinha como, em sua página de ciência, a definiu como o ‘mais sensacional fato científico daquele ano’. Estava criado o ‘boimate’, que entrou para o anedotário jornalístico brasileiro e azedou o paladar dos infalíveis checadores do semanário.

Desde 1964, sabemos que 1º de abril não é uma data de piadas felizes. Com a eleição de Lula em 2002, a linha editorial dos Civita, Marinhos, Frias e Mesquitas não esconde o objetivo de fazer guerra aberta ao governo. São cinco anos de distorção de fatos, editorialização de textos e enquadramentos providenciais…

Latifúndio amazônico

Quando o senador tucano, conhecido por seu açodamento em denúncias vazias, defende a soberania nacional de um ataque imaginário, estaríamos presenciando a fusão dinâmica entre imprensa irresponsável e oposição sem projetos? Talvez. Mas o resultado dessa afinidade eletiva vai além de um ‘mico’.

Fossem outros os tempos – e o ecossistema político ainda comportasse espécies em extinção do cenário institucional – o resultado do cruzamento da marcha da insensatez conservadora daria luz a um gorila hiperativo. Certamente teria como habitat dois campos que, cada vez mais, se assemelham, seja em termos éticos, seja em termos operacionais: o do jornalismo engajado no projeto neoliberal e o de seus aliados no campo político.

O reacionarismo estridente, que sempre tem acolhida na dobra superior dos grandes jornais e nas telas do horário nobre, é a evidência empírica da confluência dos campos.

Somados, os terrenos equivalem a um latifúndio de dimensões amazônicas. Um longo território protegido em dois flancos: de um lado, um monopólio informativo, modelado pela propriedade cruzada dos meios de comunicação, confirma a legitimidade de sua extensão. De outro, um Poder Judiciário que não cessa de legislar sanciona suas demandas.

É proibido voar

É nesse contexto que mídias alternativas como Observatório da Imprensa, Caros Amigos ou Agência Carta Maior, entre outras, podem fazer toda diferença. Lutar por sua consolidação, como espaço democrático e plural, é compreender que não se faz democracia com pensamento único. É resgatar uma tradição abandonada com a extinção dos jornais Movimento, Opinião, Ex, Versus, Coojornal, Em Tempo e Pasquim. Se o que selou o fim desses veículos foi o encerramento do regime militar, por certo vivemos um ciclo que clama pelo ressurgimento de publicações de viés contra-hegemônico…

Vejamos um exemplo dessa necessidade. No caso da atual crise aérea, a narrativa da grande imprensa permite uma correta avaliação dos fatos? Quando um jornalista, como Paulo Henrique Amorim, vê motivação golpista tanto na paralisação dos controladores quanto na CPI instalada por determinação de um Judiciário militante, talvez incorra, ou não, em alguma avaliação precipitada. Mas, como formular melhor juízo na falta de diversidade interpretativa?

O fato é que, sem negar negligência gerencial e falta de investimentos no setor, o ‘apagão’, tal como apresentado nos jornalões e emissoras televisivas, revela dois aspectos que dão o norte da mídia contemporânea: através de operações de simplificação semântica jogar a classe média contra Lula e pautar a ação governamental. O que espera o ministro Franklin Martins é missão pra lá de espinhosa.

A questão central para a agenda democrática passa por uma nova estruturação do campo informativo no Brasil. Sem isso, não nos iludamos: o 1º de abril, como farsa ou tragédia, é sempre uma possibilidade concreta. E pouco importa a correlação de forças quando mídia e toga operam em perfeita sintonia.

Em tempos de boimate generalizado, está na hora de reaparecer o boi voador. Aquele que, segundo Chico Buarque, ‘é fora da lei, é fora do ar’ e que deve ser seguro através de determinação precisa. É proibido voar.

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Professor de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro, RJ