Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A mídia fugiu de campo

A menos de um mês da tragédia que se abateu sobre as cidades serranas do Rio de Janeiro, a mídia – sobretudo a mídia papel – já saiu do tema. A cobertura foi, como prevíamos, meramente reativa, na base do ‘aconteceu, virou notícia’. Com certeza, o reencontro da mídia com essa complexa realidade das áreas de risco, da ocupação de encostas, das enchentes, dos eventos climáticos extremos, vai-se dar nas próximas tragédias ao som das lamúrias pela perda de centenas de vidas.

‘Já encheu o saco!’ devem ter gritado os iluminados das redações para impor ao reportariado mais um longo ciclo de omissão. Não esperaram sequer pela contagem final dos mortos, que pode ultrapassar fácil a casa dos quatro dígitos.

Atuei como repórter de O Estado de S.Paulo nas enchentes de Santa Catarina em 1983. Permaneci 45 dias em Florianópolis, de onde, diariamente, me deslocava para as cidades do Vale do Itajaí – Blumenau, Gaspar, Ilhota, Itajaí – devastadas pela inundação. Passada a fase de cobertura intensiva, voltei ao Vale inúmeras vezes para acompanhar a recuperação das cidades, denunciar atrasos no prometido apoio oficial e revelar as providências que surgiam por iniciativa da Universidade de Blumenau no sentido de evitar tanto dano social nas enchentes do futuro. Os jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde passaram, de certo modo, o ano de 1983 ocupados com a temática das enchentes e a ocupação das áreas de risco.

Megacomputadores já no Inpe

As cidades do Vale do Itajaí puseram de pé na década de 1980 um sistema de avisos à população das áreas críticas para permitir a retirada das famílias toda vez que as chuvas nas cabeceiras do rio Itajaí-Açu começavam a ultrapassar os limites do suportável. O acompanhamento sistemático do problema não veio por mera iniciativa do repórter. Era, aliás, o repórter que procurava apenas refletir em seu trabalho do dia-a-dia o espírito do jornalismo da época, muito mais consequente e menos – bem menos – superficial.

Na cobertura meramente reativa da tragédia nas cidades serranas do Rio de Janeiro, os jornais apresentaram o plano do governo federal para criar um sistema de alerta para as populações das áreas de risco. O plano fora definido há quatro anos, ficou no papel e o governo voltou a anunciar sua implantação dentro de mais quatro anos. Nota-se, pelas características da cobertura do anúncio do novo-velho plano, que a mídia brasileira transformou-se também em mera repetidora dos sinais de governo, pois não teve sequer a capacidade de exercer a crítica sobre o projeto anunciado. Primeiro que o anúncio partiu do Ministério errado, o da Ciência e Tecnologia, quando deveria ter partido do Ministério das Cidades. Segundo, que o prazo de quatro anos – uma eternidade, se formos observar o cenário crítico das áreas de risco – foi atribuído à necessidade de compra de um megacomputador para calibrar as previsões meteorológicas.

Esqueceu-se a mídia que esses megacomputadores já existem no Brasil e são operados pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos – Cptec-Inpe há cerca de 20 anos. A compra de tais equipamentos foi justificada à época para permitir que o Brasil entrasse na era da previsão meteorológica de mais longo prazo. Ninguém sequer perguntou ao ministro Aloizio Mercadante, da Ciência e Tecnologia, por que a compra de mais esse equipamento e o que foi feito com o conjunto de megacomputadores incorporados ao Inpe há duas décadas.

Não se faz mais jornalismo

Na paralela, noticiou-se também que uma das áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro passou a contar com um sistema de avisos – acionado por sirenes – para permitir a saída voluntária das famílias no caso de ameaça de chuva torrencial. Simples, não? (Houve um cadastramento das famílias para saber se elas podem deixar as áreas de risco com facilidade ou vão precisar de apoio ? Quantos cadeirantes ou paraplégicos existem entre essa população?)

A verdade é que o anúncio desse sistema se contradiz com o anúncio feito pelo ministro Aloizio Mercadante. Pergunto: se é possível emitir avisos para um bairro do Rio por que não é possível para todas as demais áreas de risco do país? Se a base do sistema – informes meteorológicos com previsão antecipada de eventos extremos – está disponível para atender um bairro do Rio, estará disponível para atender a todas as áreas de risco espalhadas pelo país.

Na verdade, faltou imprensa para promover a discussão e aprofundar o assunto.

Quem visitou o Inpe para saber o que – e como – é possível fazer para minimizar o tipo de tragédia no curto prazo? Quem visitou a Universidade do Rio de Janeiro para saber o que pode ser feito de imediato para evitar as consequências tão drásticas dos eventos climáticos extremos tanto na cidade do Rio quanto na região serrana? Quem visitou a USP e outras tantas academias que se dizem envolvidas com os estudos das consequências para o Brasil do chamado aquecimento global?

Nem diria que não se faz jornalismo como antigamente, pois trata-se de admitirmos que simplesmente não se faz mais jornalismo no Brasil.

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Jornalista, ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil