Um homem negro de 40 anos é assassinado por dois seguranças brancos, em um supermercado de Porto Alegre. Uma mulher jovem vítima de estupro é humilhada na audiência virtual e a conclusão da justiça é que foi um caso de estupro culposo — ou seja, sem intenção. Mulheres negras são as que mais sofrem as consequências econômicas da pandemia da Covid-19. Esses são alguns exemplos das manchetes ou notícias que circularam nas redes sociais nas últimas semanas e com as quais, provavelmente, você, leitora/leitor, se deparou.
Por outro lado, na apuração e abordagem dessas informações e fatos, bem como na sua divulgação, profissionais, empresas e outros atores sociais e políticos ficaram envolvidos não apenas na transmissão de informações, mas em dilemas que perpassam temas tão profundos e não resolvidos no país, como o racismo e a violência de gênero. Esses dilemas, que atravessam as práticas profissionais e se transmutam também nos enquadramentos apresentados pelos veículos são uma questão urgente para se pensar coletiva e interdisciplinarmente. Como essas abordagens foram construídas? O que representam para a sociedade os desafios atuais de negros e mulheres no país? Como os profissionais ou pesquisadoras/pesquisadores de comunicação se perceberam e se sentiram diante dessas coberturas?
Visando estabelecer um espaço de discussão plural quanto a essas temáticas, as jornalistas e doutoras em Ciência Política Viviane Gonçalves Freitas (UFMG) e Lucy Oliveira (UFSCar) propuseram a criação do Grupo de Trabalho (GT) Mídia, Gênero e Raça, junto à Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). O GT, coordenado pelas pesquisadoras, objetiva incentivar debates que ultrapassem a academia e que possam permitir a reflexão coletiva e crítica sobre a relação entre a atuação da mídia e as questões de gênero, raça e política.
“Vemos que o debate sobre gênero e raça não pode mais ser entendido apenas como algo restrito aos círculos acadêmicos. Tampouco a comunicação pode fechar os olhos para a necessidade urgente de mudanças em nossa sociedade e nas práticas jornalísticas, dado que a mídia tem um papel fundamental na construção e manutenção de estereótipos, ou também de avanço nos direitos e para a cidadania de grupos sub-representados”, ressalta Freitas.
“Apresentar esta proposta e ter a honra de fundar um espaço de discussão como esse, numa associação dessa envergadura, engloba nosso papel como cientistas, e também como mulheres negras e jovens doutoras. Nossa intenção é que o GT colabore para estimular debates e experimentações de pesquisa sobre gênero e raça, tornando-se um ambiente acolhedor e capaz de apontar o debate sobre mídia, gênero e raça como imprescindível ao entendimento das democracias, da cidadania e da justiça social nas sociedades contemporâneas”, acrescenta Oliveira.
A criação do GT integra as comemorações pelos 15 anos de fundação da Compolítica, entidade pioneira nas análises de comunicação e política no país. Para Rayza Sarmento, vice-presidente da associação, “trata-se de um GT histórico, que se liga ao evidente aumento de trabalhos sobre gênero e raça no âmbito da nossa área, sobretudo na última década”. A docente da Universidade Federal de Viçosa (UFV) completa que tem a certeza de que “os trabalhos em Comunicação e Política se beneficiarão ainda mais das epistemologias críticas e da reflexão também socialmente engajada, que são marcas dos estudos racial e de gênero”. Luiz Augusto Campos, um dos coordenadores da Área de Temática (AT) Raça, Etnicidade e Política, da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), acredita que o GT “agregará à associação não apenas os debates academicamente mais instigantes e desafiadores da atualidade, como também temáticas políticas que demandam reflexão e ações urgentes”.
O GT começa suas atividades no próximo encontro nacional da Compolítica, a ser realizado em meados de 2021, acolhendo discussões quanto à cobertura jornalística sobre gênero e/ou raça; a imprensa feminista e/ou negra, em diversos momentos históricos; a comunicação de agentes públicos sobre gênero e raça; as iniciativas comunicacionais online de resistência feminista e/ou negra; a atuação de mulheres e/ou negras/os como profissionais da comunicação; a publicidade e o debate sobre gênero e raça, entre vários outros assuntos que possam ser desdobrados.
Mas, para além do encontro nacional, as pesquisadoras já trabalham em outras atividades que possam promover o debate. “Para nós, o tema ultrapassa a modularidade de uma ou outra área do conhecimento, sendo imprescindível uma visão interdisciplinar e interseccional. Além disso, queremos promover espaços relevantes — nas universidades e fora delas — para que mulheres, negras e negros, acadêmicos, jornalistas, movimentos e a sociedade de modo geral possam se encontrar no sentido de construir reflexões e práticas que permitam a construção de um país mais justo para todas e todos”, destaca Freitas. E, ainda, faz um convite: “Contamos com cada colega, das redações, das agências, da sala de aula, dos grupos de pesquisa, para nos ajudar nessa nova e importante tarefa!”.