Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia não gosta da verdade

Inicialmente, cabe relembrar que mídia e jornalismo são e não são a mesma coisa. Para qualquer iniciante em conceitos a respeito do campo da comunicação, a afirmação não causa problema algum. O problema real está no fato de que, progressivamente, a atividade jornalística vem sendo contaminada (ou usurpada) pelo (d)efeito da voracidade simplificadora e deformadora de uma estética midiática. Esta é parceira fiel e submissa da exploração sensorial.

Enquanto o jornalismo procura o equilíbrio entre fatos e verdade, a mídia explora as relações entre fatos e sensações. A conclusão, portanto, é simples: quando o jornalismo perde território para a invasão do esquema midiático, o que fica debilitado é a nobre missão de perseguir a verdade das coisas do mundo. No tocante à realidade brasileira, vejo-me obrigado a constatar que, cada vez mais, há uma codificação voltada para apelos de caráter emocional, em detrimento de codificação direcionada ao racional. Em poucos dias, pelo menos, dois fatos chamaram atenção para o tema do presente artigo.

Caso 1

De antemão, devo declarar que, desde as primeiras horas da campanha presidencial, minha opção era (e continua sendo) pelo nome do senador Barack Obama, sobre quem, neste Observatório, publiquei um artigo, no limiar da campanha (ver ‘Obama, uma vanguarda estética‘). Feito o registro, vamos em frente.

Primeiramente, houve, em vários telejornais, a notícia de que o presidente Obama decretara o fim da ‘guerra no Iraque’ em 31/08 do ano seguinte (2010). Em menos de 24 horas, os jornais afirmavam que o novo governo do presidente Obama decidira encerrar a ‘guerra’ (entenda-se: invasão) na data de 31/08/2011. Bem, não vem ao caso se telejornais ou jornais se equivocaram em relação à informação da fonte. O que, efetivamente, sob o aspecto jornalístico, interessaria é o dado surpreendente de um governo que fixa uma data para decretar o fim de uma ‘guerra’. O mesmo fato, numa época na qual o jornalismo não tivesse sido capturado (ou capitulado) pela ‘armadilha midiática’, no mínimo abriria espaço para o jornalista indagar a uma autoridade governamental acerca da fixação de uma data. Por que em 31/08/11? Não poderia ser em 20/08/11 (ou qualquer outro dia)?

Fico a imaginar, numa outra configuração de mundo, uma autoridade governamental comunicar que a Segunda Guerra Mundial terminará em… Será que nenhum jornalista teve a curiosidade de tentar saber a razão a envolver uma data? Será que o prazo firmado pelo atual governo dos EUA tem a ver com a política de esgotamento extrativo de petróleo, razão maior que fez o governo anterior determinar a invasão? Não sei. Os jornais é que deveriam promover a indagação. Todavia, nada a respeito foi divulgado. Quem dança é a verdade.

Caso 2

No programa Fantástico, exibido no domingo (1/3) pela TV Globo, após a ‘dramática’ cobertura sobre turistas brasileiros que ‘viveram o inferno’ num transatlântico – vale registrar que nenhum deles correu o menor risco de complicações –, o tema seguinte foi sobre uma ‘lenda’ a respeito do ‘fim do mundo em 21/12/12’. Nesse caso, a ‘equipe jornalística’ do Fantástico superou a ineficiência de todos que noticiaram a decisão do governo norte-americano quanto ao ‘término da guerra’ no Iraque.

Vamos ao fato. A ‘equipe do Fantástico‘ descobriu que, na internet, há dezenas de sites sobre o fim do mundo, com base numa profecia firmada pelos Maias, cuja data seria a já mencionada. Com base nessa ‘pesquisa’, a reportagem do Fantástico saiu, em externas, para indagar se, na data prevista, um tal asteróide (não recordo o nome dado) colidiria com a Terra, levando-a à extinção de qualquer vida. Realmente, a matéria foi digna do nome do programa.

Além de a ‘equipe jornalística’ entrevistar populares, também houve depoimento de astrofísico. A pergunta queria confirmar (ou não) se, na data estabelecida, um certo asteróide iria (ou não) colidir com o nosso planeta. Diante de uma questão precisa, o astrofísico negou tal possibilidade, em função dos recursos científicos de que a humanidade dispõe. Como conclusão, a ‘douta’ equipe ‘jornalística’ do Fantástico considerou que tal profecia é ‘coisa de maluco’.

Opção pelo caminho mais idiota

A sentença do Fantástico simplesmente acabou de recomendar à equipe de pesquisa jornalística da BBC a passar uma temporada em algum manicômio. A questão é simples. Há algum tempo, o Discovery Channel, alocado na Globosat (para quem tem a NET), reprisa o documentário a respeito do acontecimento. Segundo o documentário da rede mais respeitada no mundo sobre tal gênero, os cálculos da cultura dos Maias davam conta de que, de 26 em 26 mil anos, a Terra sofreria mutações profundas. Muito tempo passou e a ciência astrofísica constatou que o fato é matematicamente real. Todavia, qual é o fato prenunciado pelo calendário Maia e ratificado por renomados astrofísicos?

Em 21/12/2012, o sol migrará para o centro da Via Láctea, levando consigo o sistema solar no qual estamos. Em nenhum momento do documentário é nomeado qualquer asteróide que com a Terra irá colidir. O que, verdadeiramente, é dito, e por todos os depoentes confirmado, é o fato de que o sistema solar ocupará uma vasta área chamada de ‘cinturão de asteróides’ (uma espécie de ‘lixão cósmico’).

O fato, portanto, aumentará expressivamente a possibilidade de colisões com corpos do sistema solar. Este é o acontecimento. No mesmo documentário da BBC é dito que, em face da existência dos planetas Júpiter e Saturno (ambos muito maiores), a Terra se torna um alvo bem mais protegido, o que reduz enormemente a possibilidade de colisão. Por outro lado, o mesmo documentário não descarta o fato de que, dependendo do efeito de colisões atraídas pelos dois gigantescos planetas (Júpiter e Saturno), a Terra não possa vir a sofrer alterações.

Enfim, este é o relato de conceituados astrofísicos que emprestaram sua reputação profissional a repórteres não menos qualificados para a realização do documentário que traz a assinatura da mais reconhecida rede de televisão mundial, em matéria de ‘teledocumentário’. Contudo, a ‘equipe do Fantástico‘ optou pelo caminho mais tacanho e idiota. Que pobreza!

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro, RJ)