Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A narrativa ficcional como mecanismo de (re)construção das memórias sociais

Certa feita, Raquel de Queiroz disse, ao ser indagada sobre o que achara da adaptação de seu romance, Memorial de Maria Moura, para a TV, que havia gostado. A emissora, segundo ela, é que parecia não ter gostado de sua obra, pois havia mudado quase tudo.

Como bem observa Doc Comparato (1983, p. 25), reconhecido roteirista de TV e cinema, ‘o modo da indústria de Comunicação de Massa desempenhar sua função ideológica é o de produzir uma cultura que tende para formas estereotipadas’. É dessa maneira que a televisão se apropria do discurso literário e passa a forjar, a partir deste, o seu próprio (discurso), distorcendo a percepção primeira do autor e reorganizando-o segundo os seus preceitos.

Para entendermos o processo pelo qual passam as produções televisivas adaptadas de obras literárias, se faz necessário breve reflexão acerca do próprio processo de construção literária e suas características narrativas.

Salvo exceções, a característica primordial do herói clássico é a nobreza de espírito. Sentimentos como a generosidade, a coragem, a determinação etc. são traços marcantes de sua personalidade. São essas características que impulsionam desde o século 18 a imaginação do ávido público dos folhetins. A literatura, moderna, no entanto, se afasta dessa tendência. No caso do romance Memorial de Maria Moura nota-se, sobretudo no que se refere ao aspecto psicológico das personagens, aquelas que são marcas da literatura realista: objetividade, racionalismo, materialismo, entre outros. Há, entretanto, um aspecto que de alguma forma liga o movimento realista ao romântico, ou seja, o sentimento de insatisfação, a incapacidade de se adaptar ao mundo circundante.

Traços maquiavélicos

‘[…] ao invés de refugiar-se num mundo interior (como muitos românticos fizeram), o artista realista volta-se para o exterior a fim de dissecá-lo e expor-lhe as chagas, revelando que nem tudo vai bem na sociedade burguesa. Reside aí o compromisso político, herança romântica: não apenas conhecer a realidade, mas contribuir para modificá-la’ (PELLEGRINI, 1998).

No realismo literário não se verifica o maniqueísmo característico da literatura romântica. Não há de forma evidente o dualismo bem/mal. Todos os indivíduos carregam sua dose de pecado. Maria Moura, por exemplo, estimula, naqueles que se dispõem a conhecê-la, os sentimentos mais ambíguos. Heroína e vilã, a bandoleira suscita amor e ódio. Vítima das ingerências do sistema, Maria Moura se revolta, passando a assumir uma condição que em muitos momentos a iguala a seus algozes: rouba, saqueia, não mata, mas manda matar. Coisas impensadas para o herói clássico ou romântico.

Nesse ponto, os artifícios folhetinescos vão encontrar a linguagem televisiva: o que os produtores costumam fazer, e que é bastante evidente na adaptação de Memorial de Maria Moura, é a distinção, a separação entre bem e mal. Isso fica bem claro em dois momentos da estória, tomando por base tanto a produção televisiva, quanto o romance.

O primeiro é a relação que se estabelece entre a protagonista e seu agregado, Jardilino. No romance ficam claros, desde o início, os motivos que levam Maria Moura a se relacionar amorosamente com o rapaz: induzi-lo a matar seu padrasto, indicando, dessa maneira, os traços maquiavélicos da moça, considerando, contudo, aspectos que, aqui e ali, possam justificar suas atitudes.

Apelos e coação

Na minissérie, contudo, a personalidade da protagonista é reconstruída através de artifícios técnicos, levando o espectador desavisado a acreditar que existia desde a infância uma afeição mútua entre Jardilino e Maria Moura, o que não tem correspondência com a narrativa-referência, o romance de Raquel de Queiroz. Mesmo depois que a moça trama a sedução de seu agregado, objetivando estimulá-lo a cometer um assassinato, as intenções da protagonista não ficam claras, dando a entender que, só após a execução do crime, Maria se arrepende da promessa feita ao seu pretenso amante, que era a de deitar-se com ele.

O segundo momento da trama que merece destaque é aquele que se configura na relação entre a bandoleira e o marido de sua prima, o artista circense Valentim.

No romance, Maria Moura revela-se ardilosa, utilizando-se dos artifícios mais sutis para convencer Valentim a assassinar Cirino, amante da bandoleira a quem esta devotou toda a confiança, sendo, contudo, traída. Valentim é um artista. Nunca matou, dispondo, porém, da capacidade inigualável de manuseio com facas, domínio técnico que garantiu por muito tempo sua sobrevivência e de sua família, quando estes se apresentavam no circo, viajando sertão afora. Mesmo contrariado, Valentim cede às chantagens de ‘Dona Moura’ e mata Cirino, valendo-se, para isso, de sua técnica.

Essa passagem mostra, especialmente, o quão maquiavélica é a protagonista, quando lança mão de todos os apelos para garantir a manutenção dos seus planos, mesmo que para isso tenha de coagir quem nunca praticou qualquer tipo de crime.

O estereótipo do nordeste

Na minissérie, a cena em que Valentim assassina Cirino é no mínimo surpreendente. Maria Moura esclarece ao seu traidor que, mesmo tendo muitos motivos para puni-lo, não ia castigá-lo, pois não queria encrenca com o pai do rapaz, a quem considerava um homem poderoso. Termina dando-lhe supostamente a liberdade, oferecendo-lhe um cavalo para que pudesse ir embora. Quando Cirino atravessa a porteira que delimita o terreiro da Casa Forte, recebe um golpe de falca certeiro no coração. O executor do arremesso certeiro e fatal, como se sabe, é Valentim. O que surpreende, contudo, é o fato de alguém tão ético se revelar, de forma tão surpreendente, um assassino frio, o que fica possível supor pela imagem do artista arremessando a faca contra o inimigo de Moura.

A intenção da produção, como se pode depreender é, mais uma vez, afastar os traços de maldade da protagonista, presentes na narrativa-referência, garantindo, dessa forma, a arregimentação da simpatia do público pela personagem e, por extensão, garantir, dessa forma, a tão cobiçada audiência.

Como bem aponta Lira Neto (2009, p. E5),

‘É compreensível que na transposição de qualquer história para as telas seja permitido – e necessário – o recurso a algumas licenças poéticas, como o acréscimo de diálogos imaginários e situações fictícias. É preciso, claro, amarrar o roteiro e conferir fluência à narrativa. O problema é quando esse tipo de artifício legítimo […], sobrepõe-se à história verdadeira, oferecendo ao telespectador uma visão distorcida dos acontecimentos […].’

Um outro aspecto que merece atenção é aquele que diz respeito aos cenários da trama: no romance, não de forma explícita, mas sugerida, a história se ambienta no interior cearense. A emissora optou, contudo, por desenvolver a estória, também de forma sugerida, no interior de Goiás, muito embora as filmagens tenham sido realizadas na cidade histórica de Tiradentes. O argumento: romper com o estereótipo propagado pelas produções televisivas de que o nordeste é um grande sertão.

Instância de dominação

Devemos admitir a nobre intenção dos produtores. Contudo, a decisão não foi feliz, pois o preconceito (de que o nordeste é um grande sertão) permaneceu mais do que vivo na consciência desses indivíduos e, por consequência, na do público telespectador. Isso posto é necessário fazer os apontamentos sobre a observação que fazemos:

1º – Ao contrário de outras obras de Raquel de Queiroz, como O quinze, obra que a consagrou, Memorial de Maria Moura se afasta da exploração da imagem de um sertão árido, dando pouquíssima ou quase nenhuma atenção à seca;

2º – Maria Moura, na tentativa de fugir de seus primos gananciosos, procura se refugiar na dita Serra dos Padres, descrita como bastante abundante em riquezas naturais;

3º – Ao contrário do que é difundido pela grande mídia, existem no interior do Nordeste brasileiro, vastas extensões de terra bastante ricas em natureza, como é o caso da Serra da Ibiapina, verdadeiro oásis no interior do Ceará, onde Raquel certamente se inspirou e que a produção poderia ter considerado.

4º – Todos esses aspectos poderiam garantir às filmagens da minissérie os mesmos cenários onde foi filmada, sem, contudo, mudar a indicação original de onde a história se passava, contribuindo, dessa maneira, com o rompimento da imagem preestabelecida do nordeste. Ao ver a paisagem verdejante, o espectador saberia que, mesmo se tratando de uma paisagem rica em vegetação, aquele seria o nordeste, associando, dessa maneira, essa região do país não só com a aridez e com a pobreza. Assim, a indústria cultural garante a manutenção das formas estereotipadas apontadas anteriormente por Comparato e que, desta forma, se perpetuarão nas memórias coletivas.

Jô Gondar (2003) esclarece que a memória não se refere necessariamente às instâncias pregressas, mas, também ao porvir, ou seja, ao que ainda está para acontecer – algo que se localiza no futuro. A partir disso, é possível imaginar que a memória social é, potencialmente, uma instância de dominação. Isso porque ‘todo poder pretende controlar a memória, selecionando o que deve ser lembrado e o que deve se esquecido’ (GONDAR, 2003, p. 32).

O que e como deve ser lembrado

Esse controle, ao qual a autora faz referência, é possível através da utilização dos diversos mecanismos técnicos tão bem administrados pela indústria cultural.

Não por menos, a sociedade atual, dita sociedade do controle, pauta-se pelo assujeitamento do indivíduo, bem como pela produção de subjetividade. Gondar (2003, p. 32), referindo-se ao entendimento de memória por Foucault, explica que este ‘irá nos mostrar […] que não podemos separar a produção da memória de determinadas tecnologias ou dispositivos de poder em diferentes momentos históricos’. Ou seja, a dita sociedade do controle se utiliza avidamente de instrumentos técnicos de modo a garantir a manutenção das personalidades.

Como bem explica Sodré (2006, p. 17), ‘saber e sentir ingressam num novo registro, que é o da possibilidade de sua exteriorização objetiva, de sua delegação à máquina’.

No caso em questão, ou seja, a narrativa ficcional televisiva, esse processo se apresenta de maneira bastante clara. À medida que a massa espectadora toma contato com a obra através da produção, essa, invariavelmente, construirá sua percepção a partir do que foi apresentado. Pode-se, portanto, construir a imagem de Maria Moura a partir de um referencial objetivo comum. O que se terá é uma homogeneização da consciência. ‘O `espelho´ midiático não é simples cópia, reprodução ou reflexo, por que implica uma nova forma de vida, com um novo espaço e modo de interpretação coletiva dos indivíduos, portanto, outros parâmetros para a constituição das identidades pessoais’ (SODRÉ, 2003, p. 23).

Como é possível perceber, os meios de comunicação de massa não só decidem o que deve ser lembrado, mas, sobretudo, como deve ser lembrado.

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Bibliotecário, Rio de Janeiro, RJ