Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A narrativa jornalística e o dizer do outro

As últimas semanas de narrativa jornalística primaram por manifestar dizeres de personalidades, depoimentos às CPIs, entrevistas com autoridades e pronunciamentos de anônimos e notórios. O fervilhante movimento de pespontar os dizeres de acusados, cúmplices e vítimas em notícias e reportagens, que se pretendem muito perto dos fatos e da verdade, ganha corpo de modo alucinante, quase hipnótico, a ponto de materializar um popstar a cada dia. Dele retiram-se frases bombásticas, capazes de alimentar a roda d’água da comunicação e do entretenimento, fazendo valer a máxima de que é preciso informar, a qualquer preço, doa a quem doer. Mais intenso o tráfico de dados e novidades, mais lucros e audiência para as empresas do ramo.


Afora as cifras com muitos zeros, prestígio e poder alimentam essa fornalha produtora de notícias, reportagem e relatos em escala global e ritmo industrial, marcando a velocidade e o excesso como elementos sintomáticos da mídia. Desse modo, interessa às corporações que se fale muito e se explore em excesso os dizeres dos outros, sejam quais forem. Nesse sentido é que tenho observado, com mais freqüência do que o normal, o uso de manchetes que fazem referência à voz de depoentes e que trazem à narrativa jornalística a chancela do discurso de outrem.


Considerando que o discurso é palco de tensas disputas, inscritas ideologicamente, e que nele litigam posições de poder e de não-poder, merece atenção o conjunto de formulações abaixo, publicadas na Folha de S.Paulo, edição de domingo 21 de agosto. Para efeito de didatizar uma cronologia fácil e de absorção rápida ao leitor, o jornal pontua:




‘Delúbio Soares confirmou a existência de um caixa dois no PT, mas afirmou que o dinheiro transferido por Marcos (…)’


‘(…) Marcos Valério disse que tomou empréstimos bancários de 2003 a 2005 em nome (..)’


‘Roberto Jefferson disse que o dinheiro repassado aos deputados vinha em parte de estatais e acusou (…)’


‘Brant disse que dinheiro foi doado pela Usiminas e que a SMPB apenas (…)’


‘Henrique Pizzolatto (…) disse que o ministro Luis Gushiken interferia nos investimento e nos contratos (…)’


‘(…) Rogério Buratti disse que a empreiteira Leão Leão venceu a licitação do lixo (…)’


Ao analisar o discurso com constante retorno ao que já foi dito, aos fios intertextuais que engendram na rede da memória e ao interdiscurso, é possível inferir que a narrativa jornalística é nutrida permanentemente pelos depoimentos daqueles que seriam as fontes de informação; fontes estas que o próprio órgão de comunicação seleciona para abastecer e desenhar uma colcha de retalhos de falas e de dizeres de vários outros. Diante disso, pergunta-se, então, por que divulgar certos depoimentos e não outros? Qual é o critério para doar, por exemplo, tantas e repetidas vezes, o microfone a ACM Neto? O que move os jornalistas a buscarem certas fontes de informação, e não outras? A resposta a essas perguntas toca um emaranhado jogo de interesses das corporações de mídia, o que leva a angulações já prescritas nas/pelas próprias linhas editoriais das redações, o que, em última instância, conduz a reflexões sobre poder, saber e dizer.


Divulgado, clonado e redito


Recortar as vozes interessantes para os editoriais, editar as entrevistas apagando certos efeitos e destacando outros, colocar na manchete o depoimento de denúncia que possa servir a interesses do jornal e, sobretudo, anunciar pela voz de outrem os sentidos que o jornal não assina de modo explícito. O volume exagerado de ‘disse que’ nos jornais e a destacada atenção a esse movimento discursivo de promoção de voz alheia sintomatizam uma forma de esconderijo sobre a pele cifrada das palavras alheias. O jornal(ista) não precisa assumir responsabilidades pelo dizer-depoimento e isenta-se de ser punido e penalizado por sua divulgação. Assim, refugia-se na sombra escura de uma voz que, esta sim, se expõe e fica marcada como dita por um dono X.


Mais do que um recurso ditado pelas boas maneiras dos manuais jornalísticos, essa manobra discursiva engendra um modo de fazer funcionar sentidos dominantes, politicamente necessários para dirigir relações de poder, que, naturalizados como verdadeiros e passíveis de credibilidade, ganham força pela repetição. Exemplo recente desse funcionamento pode ser observado nas três manchetes que seguem, colhidas em jornais de circulação nacional, que repetem o retorno a uma mesma e só voz.




Folha de S. Paulo: Doleiro diz que trabalhou para petistas’


O Estado de S. Paulo: ”Doleiro diz ter provas de que o PT mandou dinheiro ao exterior’


O Globo: ‘Doleiro preso diz à CPI que atendia a dirigentes do PT’


Essa orquestração tão afinada manifesta o retorno à voz do mesmo sujeito, nesse caso, o doleiro repentinamente colocado no lugar de credibilidade e citado como peça importante no cenário nacional. Não que sua fala seja desprezível, mas daí a tratá-lo como fonte explicativa para as conexões entre figuras e partidos políticos é exagero; tomá-lo como depoimento a ser muito divulgado, clonado e redito tenta marcar, por força da persistência da repetição, um lugar discursivo que se quer sustentar, naturalizar e creditar importância. Vale aqui o adendo de que não são poucas as vezes em que a mídia promove a circulação de relatos que pouca ou nenhuma importância tem para esclarecimento dos fatos, visto que revelam um diz-que-disse, síntese de pura fofoca.


Filtro de interesses


A tagarelice de empresários, doleiros, ex-mulheres, prostitutas, marqueteiros, que descarregam suas metralhadoras acusatórias em público, é até compreensível, visto que muitos vivem seu único dia de fama. Difícil é entender como a mídia os torna oráculos da verdade, portadores de informações sempre confiáveis e peças fundamentais para sua própria ação justiceira. Mais curioso é que tudo isso é discursivizado sem que sejam mostrados os remendos das várias vozes, sem que a engrenagem de produção da notícia fique à mostra, enfim, sem que os andaimes do discurso possam ser vistos pelo leitor. Os diversos filtros e tesouras – ferramentas usualmente mobilizadas no/pelo fazer do jornal – ficam apagadas e o leitor, ingênuo, tem a ilusão de que recebe o todo da realidade, o fato em sua completude.


Talvez estejam aqui dois méritos do discurso jornalístico: o primeiro, usar o esquecimento necessário para fazer crer que o discurso relatado possibilita a escuta da voz de autoridade de outrem e, assim, o jornal não precisa dizê-lo, posto que alguém de respeito já o faz. Segundo: oferecer ao leitor cacos de vozes, pedaços de relatos e apenas uma versão sobre o fato, ao mesmo tempo em que se cria o imaginário de que isso esgota a realidade. Mostrar fragmentos, colocar inúmeras vozes picotadas e emendar estilhaços, fazendo parecer que tem-se a unidade e o retrato homogêneo do real. Supondo apresentar uma página coesa e coerente, pretende-se, ainda que virtualmente, revelar ao leitor efeitos de sentidos, que já foram construídos, editados, engrenados e selecionados sem que assim o pareçam.


Nesse entremeio de tantos recortes, temas, personagens e ditos, subsiste a tentativa de emendar cacos, colando-os de modo de promover um desenho, às vezes desfocado pelas lentes embaçadas do sensacionalismo, outras pelo exagero de arriscadas espetaculares, mas sempre contornado pelo filtro de interesses de poder que não se deixam registrar.

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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo