Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A navalha cega e o dia seguinte

No domingo (27/5), sobraram nove dos 48 presos na Operação Navalha, deflagrada pouco mais de uma semana antes pela Polícia Federal. Aos poucos, a pauta da imprensa se esvazia, sobretudo porque das investigações até agora divulgadas nenhum fato novo e espetacular se espera. Então, começam a entrar figuras diferentes e histórias bem mais prosaicas sobre a operação. Na manchete dominical do Globo, por exemplo, estava o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e uma declaração anódina: a AMB pedirá maior prioridade aos casos de corrupção. Nenhuma palavra sobre o papel a que a associação se prestou na semana passada, ao criticar, sem endereço certo, ‘abusos’ da Polícia Federal. Sinal de que, depois de cortar o pescoço de um ministro, a navalha cegou. Acabou o assunto.

Agora, enfim, a imprensa mostrará se está à altura dos desafios de um país lacerado pela corrupção e desejoso de livrar-se do mal, ou se está conformada com o papel de caixa de ressonância de um setor da Polícia Federal. Por isso, duas pautas, a meu ver, impõem-se neste momento.

Primeira: o que a eficiência da Polícia Federal nas operações esconde? Qual é o segredo? Apenas o Estado de S.Paulo chegou perto, mas não muito, de mostrar que existe uma PF dentro da PF; e que essa PF-2, por assim dizer, é a responsável pelo sucesso das investigações – Navalha, Hurricane e outras. Uma PF sem as graves restrições materiais de outras unidades policiais, com dinheiro, tempo, homens e tecnologia para investigar. Essa PF conversa com o Ministério Público e com o Judiciário, negocia prazos e estratégias, organiza o trabalho para ajudar quem vem depois, monta relatórios e dossiês muito completos. Sabe qual é seu papel e tenta cumprir rigorosamente a lei. Tem o apoio total da chefia.

Duas polícias na mesma polícia

Ela também escorrega, claro. Se fosse mais ousada na apuração, a imprensa chegaria aos fracassos da nova PF, o que é uma boa história. Mas a melhor é que a PF-2 não quer nada com a outra, a PF-1, a da greve, das filas em aeroportos e delegacias, dos 40 dias para emitir um passaporte, dos inquéritos que vagam como zumbis moribundos, sem rumo, sem fim, entre um pedido de prorrogação de prazo e outro e ordens do Ministério Público jamais cumpridas por qualquer motivo fútil.

Em alguns inquéritos, só falta o delegado da PF-1 dizer que não despachou no prazo porque tinha de cortar o cabelo no Jassa. A esse respeito, lembrou o Estadão um fato curioso: a PF-2 não compartilha, nos estados, sequer os prédios da PF-1. Deveria ter acrescentado que, na sede da PF-2 em Brasília, quem é da PF-1 não entra sem estar devidamente autorizado: existe um rigoroso controle eletrônico de acesso.

A imprensa, no entanto, ignorou até agora essa história das duas polícias dentro da mesma polícia e atribui à PF inteira o que é próprio de um pequeno e seleto grupo. Daí ser necessário mostrar o outro lado: a PF que não funciona, a PF de todos os dias; a PF que o cidadão brasileiro tem de enfrentar em seu cotidiano; a PF que não investiga neca dulcineca por comodismo; a PF que finge trabalhar em seus prédios imponentes, caros e inúteis.

Os desafios pós-navalha

A outra pauta é mais complexa. A todo tempo se busca a raiz da impunidade, só que a imprensa nunca desceu fundo nessas explorações. Em geral, ouvem-se alguns especialistas de meia tigela, os mesmos de sempre, representantes de interesses concretos, mas é raro um jornalista embrenhar-se pessoalmente no cotidiano de uma vara criminal ou de um tribunal de justiça. Quase nunca, a rigor, o repórter vai a campo recolher informações.

Lembro-me de que na Gazeta Mercantil, no começo da década, dávamos muitos furos com simples visitas ao fórum, espiadas em processos importantes e conversas com os funcionários para saber quando ‘o doutor’ (o juiz) iria despachar. Dá resultado, pois o Judiciário é o mais transparente dos poderes na atividade-fim (o que se anula com o segredo furioso na atividade-meio), tudo está nos autos e os autos são públicos – afora os excepcionais casos de sigilo. O pessoal dos cartórios judiciais tem, às vezes, uma cara ameaçadora, mas são pessoas normais, que geralmente tratam bem quem os trata bem.

Agora, pergunto: por que não fazer reportagens especiais, com o dia-a-dia de investigadores, procuradores e juízes? Qual o motivo de confiar tanto em especialistas de araque? As grandes reportagens que mostrem ‘a Justiça por dentro’, com depoimentos de pessoas reais (juízes, promotores, policiais, acusados, testemunhas, funcionários, advogados etc.) em situações reais (audiências, reuniões, despachos etc.), podem esclarecer ao público inúmeros pontos do mau funcionamento do sistema de justiça criminal e retirar o debate da esfera dos iluminados de sempre.

Seria preciso, apenas, escalar os melhores para esse serviço. Pôr os correspondentes internacionais no jogo seria um excelente complemento, para apontar em que o Brasil se distingue, de verdade, de países mais sérios. Com uma ressalva: nada dos velhos setoristas de polícia ou de justiça. Fundamental ter pouco ou nenhum contato com o mundo forense-policial, no qual os vícios se aprendem muito rápido – tão rápido quanto o desvanescer das virtudes. A cumplicidade entre fontes e repórteres nessa área e o instinto de sobrevivência do setorista, sempre de olho na próxima exclusiva, contaminariam a investigação jornalística.

A conferir se a imprensa tem fôlego, competência e seriedade para enfrentar os desafios pós-navalha. Ou se espera a próxima operação para ser um mísero repositório de off convenientes.

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Procurador da República em São José dos Campos (SP) e ex-repórter da Gazeta Mercantil (1999-2001)