Para um jornalista brasileiro que tem mais a fazer do que passar horas na internet lendo textos em blogs, websites e edições online da imprensa americana talvez não seja fácil avaliar o massacre a que foi submetida a revista Newsweek por causa de uma das dez sentenças de uma nota publicada na seção ‘Periscope’, na edição datada de 9 de maio.
Assinada pelo estrelado repórter Michael Isikoff, que em 1998 foi o primeiro jornalista de mídia impressa a tratar do caso Monica Lewinsky, e pelo repórter que cobre segurança nacional para a revista, a nota – como o mundo inteiro viria a saber – informava que ‘se esperava’ que um relatório prestes a ser divulgado pelo Comando Sul das Forças Armadas americanas, com sede em Miami e responsável pela base de Guantánamo, contivesse uma admissão chocante: para desmoralizar prisioneiros muçulmanos, militares que participam dos seus interrogatórios na base jogaram na privada um exemplar do Alcorão e puxaram a descarga.
Profanações não tão abomináveis porém freqüentes já haviam sido relatadas – e confirmadas depois da nota da Newsweek – por pelo menos quatro ex-detentos de Guantánamo que vivem na Inglaterra. Alegações semelhantes foram registradas pela Cruz Vermelha Internacional. Um ex-tradutor árabe da base disse que a forma como os guardas e interrogadores manipulavam o Alcorão constituía ‘um problema crônico’.
Em abril, um ex-interrogador americano confirmou ao New York Times o depoimento de um ex-preso kuwaitiano, segundo o qual o manuseio ofensivo do livro sagrado dos maometanos provocou uma greve de fome – que só terminou depois que um oficial graduado pediu desculpas pelo sistema de alto-falantes do campo.
Dias atrás, o Los Angeles Times contabilizou ‘dezenas de acusações relacionadas ao Alcorão também nas instalações prisionais mantidas pelos americanos no Afeganistão e no Iraque’. As descrições repugnam a consciência de qualquer um, por serem violentos atos de tortura psicológica infligidos aos seguidores do islamismo.
O que distingue o breve texto da Newsweek de todas as demais denúncias similares é que se originou do que a revista chamou ‘uma fonte [do governo americano] de há muito confiável’. Mesmo assim, decerto por causa dos precedentes, o furo não repercutiu na imprensa do país, nem foi desmentido pelos porta-vozes de Washington.
Só quando começaram os protestos de rua no Afeganistão, na terça-feira (10/5), as autoridades reagiram. Ainda assim, o chefe das forças americanas no país, general Carl Eichenberry, disse que os distúrbios ‘de forma alguma tinham a ver com o artigo da revista’. Seja como for, 17 pessoas morreram e centenas de outras ficaram feridas em manifestações que se propagaram pelo mundo árabe-muçulmano, da Indonésia à Palestina.
Rotina da tortura
Na sexta-feira (13/5), o editor da Newsweek, Mark Whitaker, recebeu um indignado telefonema do porta-voz do Pentágono Larry DiRita, culpando a revista pelos violentos protestos contra os ímpios americanos. Começava, para a Newsweek – o segundo maior semanário do mundo, com 3,1 milhões de exemplares, 900 mil a menos do que os da Time – uma sessão de pau-de-arara que se prolongaria por quase uma semana, antes de arrefecer, sem cessar de todo.
No sábado, Isikoff entrou em contato com a fonte da informação inflamatória. E dela ouviu que ‘não tinha mais certeza’ se a referência ao Alcorão fazia parte do documento que mencionara ou mesmo da investigação do Comando Sul.
No dia seguinte, em comunicado, e na segunda-feira, no corpo da revista, Whitaker pediu desculpas pela materiola. Contou que, antes de publicá-la, a Newsweek a submetera a dois funcionários do governo: um contestou um detalhe não relacionado com o Alcorão; o outro nada disse – o que os jornalistas, acreditando que quem cala, consente, interpretaram como concordância de ambos.
‘Você pode agir como um profissional nas suas reportagens e ainda assim cometer erros’, argumentou Whitaker. ‘Todos aqui fizeram a coisa certa.’ Ele chegou a dizer que se os militares tivessem pedido para segurar a matéria, teria mandado segurá-la.
A essa altura o bushismo já se voltara contra a revista com fúria duplicada. O porta-voz da Casa Branca Scott McClellan exigiu uma retratação cabal. Obteve o que queria na terça (17/5). Aí passou a demandar o que, pelo menos de público, nunca antes um assessor de imprensa do presidente ousara: que a revista publicasse uma reportagem sobre ‘as políticas e as práticas dos militares americanos’ que ‘se desdobram para tratar o sagrado Alcorão com muito cuidado e respeito’.
Palpite infeliz: três dias depois, na sexta-feira, o New York Times publicou uma descrição, baseada em documentação oficial e entrevistas, e carregada de horrendos detalhes, das ‘práticas dos militares americanos’ na casa de detenção de Bagram – uma versão afegã da infame prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, onde são interrogados sob tortura suspeitos de terrorismo.
De autoria de Tim Golden, com diversos colaboradores, a reportagem de duas páginas de jornal reconstitui pormenorizadamente a morte de dois desses suspeitos, depois de sevícias reminiscentes dos porões da repressão de qualquer ditadura. Ambos eram inocentes.
No domingo, o mesmo repórter assinou outra matéria segundo a qual investigadores do exército americano recomendaram inicialmente que o caso fosse arquivado sem acusações a quem quer que seja.
A matéria do NYT veio se juntar a pilhas de evidências – como as fotos de Abu Ghraib – de que soldados e especialistas civis americanos recorrem rotineiramente à tortura de prisioneiros. Isso quando não os despacham a outros países do Oriente Médio e da Ásia Central cujos regimes apoiados pelos EUA praticam notórios abusos contra os direitos humanos.
Pega-pra-capar
É de todo possível que esse retrospecto e as numerosas alegações sobre a dessacralização do Alcorão tenham induzido a Newsweek a publicar a nota que publicou com base numa única fonte anônima e no não-desmentido de duas outras, todas de funcionários federais.
Se os Estados Unidos de Bush não agissem como agem, um repórter que tem nome a zelar, como Isikoff, e o seu não menos respeitável parceiro, não bancariam a história enquanto uma garimpagem mais profunda não a confirmasse.
Simplesmente não seria plausível, como a fonte os levou a crer, que o assunto já tivesse sido abordado numa série de e-mails do FBI, liberados em fins de 2004, sobre as violências praticadas em Guantánamo. A versão tinha o que falta ao governo Bush: credibilidade. Nas palavras da revista, ‘parecia chocante, mas não incrível’.
O moderado Jordan Times, de Amã, comentou que ‘a alegada profanação do Alcorão, como meio de exercer pressão psicológica sobre prisioneiros muçulmanos, parece inteiramente consistente com outras repreensíveis técnicas de interrogatório que se sabe terem sido aplicadas em outros lugares’.
O Washington Post, da mesma empresa que publica a Newsweek, observou: ‘A revista levou cerca de duas semanas para se retratar. Faz um ano desde que o verdadeiro problema por trás do artigo – o abuso sistemático e a deliberada humilhação de prisioneiros muçulmanos – veio à luz com o desastre de Abu Ghraib. A Casa Branca e o Pentágono se recusaram a iniciar qualquer investigação séria sobre as decisões que conduziram ao abuso, humilhação, tortura e até morte de prisioneiros capturados durante operações antiterroristas e a invasão do Iraque.’
A rigor, só os insiders – além dos perpetradores do alegado ultraje e as vítimas que eles teriam pretendido humilhar – sabem se um documento militar americano disse que um exemplar do Alcorão foi mesmo parar em um vaso sanitário da base arrendada a Cuba, ou se o fato aconteceu.
O fato de a Newsweek não ter conseguido provar que a história é verdadeira não prova que ela seja falsa.
Do mesmo modo, o fato de os produtores do programa 60 Minutes da rede CBS, ancorado pelo legendário Dan Rather, não terem conseguido provar, em outubro do ano passado, que os documentos sobre a suposta boa-vida do recruta George W. Bush numa base da Guarda Nacional eram verdadeiros não desmente os privilégios de que o jovem milionário desfrutou enquanto ficava longe do Vietnã.
Mas, em sintonia com a imprensa chapa-branca e os websites republicanos, a matilha dos blogueiros de direita – que parecem ter tomado conta da blogosfera política nos Estados Unidos – atiraram-se contra a Newsweek com a mesma sanha antes dirigida a Dan Rather.
No Capitólio, uma deputada republicana exortou os seus pares a cancelar as suas assinaturas da revista. E um deputado do mesmo partido disse que Isikoff fabricou o incidente do Alcorão e chamou de criminoso o comportamento do semanário.
Domingo, no que pode vir a ser o indício de uma tendência, uma pequena emissora de rádio de Houston, Texas, deixou de transmitir o programa semanal de uma hora Newsweek no Ar, emitido em rede por 85 estações.
O tablóide New York Post, de Rupert Murdoch, editorializou: ‘O relato foi o resultado lógico da cabeça-feita da mídia que sempre presume a culpa dos Estados Unidos. (…) Muitas organizações noticiosas enxergam a América e os seus soldados como vilões’.
A tal ponto chegou o pega-pra-capar que até o colunista conservador do New York Times, David Brooks, sucessor do aposentado William Safire, saiu em defesa da revista, começando por dizer que talvez não seja má idéia ficar longe da blogosfera.
Para se mostrar imparcial, escreveu que ‘todas as facções ao longo do espectro político usaram o tropeço da revista como oportunidade de abrir fogo contra os seus alvos favoritos’.
Pensar duas vezes
E haja cinismo. O porta-voz do mesmo governo que atacou um país a pretexto das armas de destruição em massa cuja existência não conseguiu provar nem antes nem depois criticou um grande órgão da imprensa americana por divulgar ‘fatos não consubstanciados’, e por ‘se esconder atrás de fontes anônimas’.
Se a Newsweek cometeu alguma mancada, não foi por apostar numa solitária informação off the records. Nunca antes a fonte enganara a revista, nem – este leitor não se cansará de repetir – a sua dica era despropositada, a julgar pelo que os americanos fazem com os seus presos islâmicos.
O erro da revista, aponta Jack Shafer, do site Slate, foi deixar que a sua fonte anônima ‘previsse o conteúdo de um futuro documento oficial’. De fato, quando o informante deu o dito pelo não dito, ele ou pode ter desmentido algo que sabia ser verdadeiro – ou esse algo deixou de ser verdadeiro: um dia a referência ao Alcorão estava no relatório militar; no outro, tinha sido expurgada. Vá saber.
Politicamente, o episódio talvez se revele um daqueles males que vêm para o bem, escreveu domingo no New York Times o colunista Frank Rich: ‘O massacre da Newsweek poderá fazer o público se dar conta muito mais do quanto o governo bate na imprensa para desviar a atenção das ficções tecidas pela sua própria máquina de propaganda’.
Jornalisticamente, o efeito mais notório é mais uma pedrada no off. De agora em diante, a Newsweek, na linha do NYT e do Washington Post, vai limitar severamente o uso de fontes anônimas. Matérias que nelas se baseiem só serão publicadas sob autorização dos seus dois principais editores ou de outros que eles designaram. O repórter terá de revelar a pelo menos um editor o nome do provedor do off.
Fontes não identificadas são um mal necessário – tanto mais quanto mais os governos, como o de Bush, fizerem do segredo, da dissimulação e da mentira políticas de Estado.
A matéria da semana passada do New York Times sobre as mortes e a tortura em Bagram só existiu, segundo a própria reportagem, porque uma pessoa com acesso à documentação a respeito estava indignada com o acobertamento do caso e a impunidade ou tratamento leniente dos torturadores.
Essa pessoa talvez pense duas vezes antes de abrir o jogo a um repórter se souber que este terá de entregar o seu nome a um editor – duplicando, em tese, o risco de ter vazada a sua identidade.
A questão tem outros aspectos ainda. Não faltará ocasião para se falar deles em outras notas.
[Texto fechado à 1h05 de 24/5]