O novo episódio da guerra entre a mais poderosa nação do mundo e um site da internet, descrito nos jornais de quinta-feira (9/12), pode ser visto como o ensaio de futuros conflitos que nos aguardam com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, num momento em que os poderes nacionais precisam se abrir cada vez mais para compromissos de alcance global.
A feroz perseguição do governo americano ao australiano Julian Assange, criador do Wikileaks, provocou uma reação em cadeia de hackers profissionais e amadores ao redor do mundo. Como resultado, os sites de empresas e outras organizações que colaboraram no cerco a Assange tiveram que sair do ar.
A tentativa de sufocar financeiramente o negócio de Assange provocou retaliações contra a Amazon, o sistema de pagamentos eletrônicos PayPal, a Mastercard e outras empresas. O cerco judicial pode causar problemas a instituições da Suécia, onde Julian Assange está sendo processado por supostos crimes sexuais.
O novo inimigo, uma horda sem líderes que se move por sua própria conta e vontade, pode crescer exponencialmente e causar prejuízos muito mais graves do que os constrangimentos provocados até agora pelo vazamento de intrigas diplomáticas através do Wikileaks.
Lições de Canetti
Por enquanto, trata-se de um movimento anárquico, porém efetivo. Amanhã, essa armada sem comando pode ganhar adesões poderosas e se transformar em oponente de respeito. A mesma cadeia de interesses que faz com que outros governos se aliem, ainda que discretamente e de forma extraoficial, à ofensiva dos Estados Unidos contra Julian Assange, tentando aniquilar seu empreendimento e tirá-lo de circulação, pode se virar contra o sistema.
Na medida em que novos vazamentos revelarem, por exemplo, os bastidores das negociações sobre as mudanças climáticas e os acertos por baixo do pano em torno das bilionárias operações de socorro a bancos e fundos de investimento a partir da crise de 2008, o exército de Brancaleone que começa a se mobilizar em defesa do Wikileaks pode agregar elementos mais poderosos e eficientes, e uma reação inicialmente difusa acabar se transformando em um conflito de grandes proporções.
Seria como alguns cenários descritos no clássico Massa e Poder, do pensador Elias Canetti.
Como ficaria a imprensa tradicional numa circunstância como essa?
Problema para a imprensa
Elias Canetti, cuja obra é considerada um dos mais reveladores ensaios sobre a humanidade do século 20, pode ser convocado também para ilustrar muitos desafios deste século que já avança para sua segunda década.
O conflito entre a nação mais poderosa do mundo e um negócio despretensioso – cujo único produto é a informação que se pretende ocultar – pode ajudar a desnudar o sistema sobre o qual muito se fala e que de fato pouco se conhece.
No momento em que o futuro do poder americano é colocado em xeque por causa de crises financeiras sucessivas e sua fragilidade exposta na ação do terrorismo, o uso excessivo de força contra o criador do Wikileaks pode ser visto como sinal de fraqueza.
À margem da profusão de vazamentos que todos os dias circulam pela internet, e que tem uma pequena parcela publicada diariamente em jornais de todo o mundo, consolidam-se velhas teorias conspiratórias, e o mundo se dá conta de que a imprensa tradicional nunca foi capaz de informar a humanidade sobre como as coisas realmente funcionam.
Dor de cabeça
Um comentário da jurista Maristela Basso, publicado na Folha de S.Paulo, revela que Julian Assange não está desamparado. Pelo contrário, ele ainda pode reverter a situação e obter uma indenização milionária do governo dos Estados Unidos. Se isso vier a acontecer, e iniciativas como o Wikileaks se tornarem dominantes na preferência dos leitores, qual será o futuro da imprensa tradicional?
Por enquanto, os jornais se deliciam com intrigas e selecionam criteriosamente o material exposto pelo Wikileaks, conforme suas próprias conveniências. Mas quanto tempo ainda vai demorar para que seus leitores percebam que, na verdade, a imprensa tradicional sempre esteve do lado do sistema, omitindo do público certas razões de Estado que na verdade escondem interesses muito particulares?
Aquilo que no princípio parecia muito divertido para algumas redações pode acabar virando uma grande dor de cabeça no futuro.