Na atual controvérsia gerada pelo ex-assessor da Casa Branca Richard A. Clarke e suas revelações no livro Against All Enemies há lições também para a mídia, dos EUA e do resto do mundo. Volta-se ao debate da manipulação da opinião pública pelos donos do poder, sigilo oficial, documentos classificados, procedimentos secretos, sessões fechadas (parlamentres ou não), fontes anônimas e whistle blowers.
‘Soprador de apito’, a expressão do antigo juiz de futebol Mário Vianna (com dois ‘enes’), é a tradução certa para as duas palavras inglesas; mas fora do contexto esportivo (no qual qualifica o mau árbitro), elas designam um personagem relevante na busca da informação e da verdade: o informante que, em nome do interesse público, revela fraude ou corrupção oficial, jogo sujo de corporações, manobras de baixo nível etc.
Os whistle blowers, cujo papel a lei busca proteger em certos países, tornam-se especialmente importantes quando um governo obcecado pelo sigilo exagera na imposição de disciplina interna aos que o servem – como o de Richard Nixon, que acabou por pagar alto preço por isso, e o do atual presidente George W. Bush, cujo passado sugere obstinação semelhante, na vida pública e na atividade privada.
Escondendo a verdade do público
A maneira como Bush tratou as dúvidas sobre o seu serviço militar na Guarda Nacional do Texas (até hoje nada se sabe sobre período superior a seis meses, no qual deixou de se apresentar) e as suspeitas de venda de ações com informação privilegiada quando era alto executivo da Harken (mandou a mídia obter os dados na empresa, que se negou a fornecê-los) esteve entre os exemplos eloqüentes.
Também grave foi o esforço para manter documentos de seu governo no Texas sob sigilo rigoroso na biblioteca presidencial do pai, pois mudaram-se as regras de acesso aos papéis de tais instituições, agora sujeitos por longo tempo a autorização especial da família. Além disso, o Departamento de Justiça expediu instruções para se retardar ao máximo qualquer pedido com base na FOIA – a Lei de Liberdade de Informação.
Some-se a isso a censura a 28 páginas (a respeito dos sauditas) do relatório sobre o 11 de Setembro e a obsessão de impedir o público de saber o que houve na comissão sobre a política de energia, presidida pelo vice-presidente Dick Cheney. Ken Lay, o homem da Enron (financiadora da campanha de Bush, que entrou em colapso em meio a escândalo de fraude), foi um dos consultados, além de executivos de corporações de petróleo.
Máquina de difamação em cena
O comportamento da mídia dos EUA em relação a tudo isso fica muito aquém do papel que ela teve no passado recente, em episódios como o dos documentos secretos do Pentágono e Watergate. Ironicamente, o mesmo Bob Woodward de Watergate foi o autor, meses depois do 11 de Setembro, de um livro (Bush At War) que parece mais lamentável, até ridículo, a cada revelação nova – como as de Richard Clarke.
Apoiando-se em entrevistas com autoridades da Casa Branca (inclusive o próprio presidente) e na sua técnica habitual (uma enxurrada de fontes anônimas), Woodward retratou um Bush ‘em guerra’ quase como herói destemido a desafiar corajosamente a maldade do mundo. A guerra a que se referia o título era retórica, ao terrorismo, comparável às guerras à droga, ao crime, à pobreza, sem fronteira ou data para terminar.
Mesmo se for levado em conta o trauma de 11 de Setembro, deve-se à baboseira de Woodward e do resto da mídia a histeria patriótica daqueles dias, com a rede Fox News à frente. Mas é a obsessão do sigilo, de esconder a verdade do público, a marca registrada do governo Bush. E, nesse sentido, o caso Clarke não é isolado. Soma-se aos de outros, também transformados em alvos da máquina de difamação dos adeptos de Bush.
Antes de Clarke, mais dois que serviram ao atual governo foram difamados como parte da tentativa implacável de destruir-lhes a reputação para desacreditar o que disseram de Bush e de sua política. O ex-embaixador Joseph Wilson fora a Nigéria, na África, a serviço da CIA, para investigar suposta prova de que o Iraque tinha tentado comprar urânio ali para sua bomba nuclear. Descobriu que era fraude grosseira.
A imprensa, omissa ou cúmplice?
Como meses depois, Bush repetiu ao Congresso a lorota do urânio, fingindo ser a fraude uma prova incontestável, Wilson fez denúncia pública – o que levou a Casa Branca a difamá-lo e ainda a identificar a mulher dele, Valerie Palme, como agente da CIA. A mídia se prestou a isso, embora seja crime identificar agentes. Hoje a questão está hoje sob investigação criminal, para que os responsáveis sejam punidos.
Em seguida a Wilson, houve ainda o caso de Paul O’Neill. Após deixar o cargo de secretário do Tesouro, ele contou que desde a primeira semana a obsessão do governo – de Bush, Cheney, Rumsfeld, Wolfowitz e outros – meses antes do 11 de Setembro era fazer a guerra no Iraque (o pretexto só viria bem depois). A Casa Branca respondeu com ataques pessoais e acusou O’Neill de exibir documentos classificados na TV.
Os casos Wilson, O’Neill e Clarke, como outros menos conspícuos, mostram:
1.
O governo Bush prefere difamar os críticos, para desacreditá-los, a admitir ou explicar o fracasso de suas políticas (contra o terrorismo e no Iraque);2.
por medo ou incompetência, até a mídia mais confiável foi omissa ou cúmplice, conduta oposta à da década de 1970, sendo emblemático o papel de Woodward antes e agora.******
Jornalista