Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A omertà da imprensa francesa

Por que os jornalistas franceses se calaram tanto tempo? A imprensa deve publicar tudo o que os jornalistas sabem sobre a vida privada dos políticos? Onde termina a vida privada e onde começa a vida pública? Por que a imprensa francesa nunca comentou as histórias de donjuanismo de Dominique Strauss-Kahn, o ex-diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional?

Excetuando-se o caso que ele teve com uma economista do FMI, denunciado por um jornal americano e investigado pelo Fundo para ver se era o caso de afastar ou não o então diretor por assédio sexual, na França ninguém ousava escrever sobre o Don Juan que assediava jornalistas e colegas de trabalho. Com a tese de que a relação foi consensual, o FMI fechou aquela página e os socialistas se preparavam para apostar no brilhante economista para representá-los na eleição presidencial de 2012. DSK era o preferido da esquerda contra Sarkozy.

No entanto, le tout Paris jornalístico conhecia a fama de sedutor e mesmo de libertino (libertin, em francês, aquele que vive uma sexualidade livre, sem entraves, como os libertins do século 18) do personagem. Por que todos se calaram todo tempo?

A piada e a demissão

Acusados pela imprensa internacional de timidez na melhor das hipóteses, incompetência e conivência na pior, os jornalistas franceses responderam com horas e horas de discussão, páginas e páginas de artigos tentando se justificar nos jornais, revistas semanais e programas de debates na televisão e no rádio. O jornal Le Monde publicou, entre outras, duas páginas exclusivamente de artigos sob o título geral “O papel da mídia no affaire DSK”, seguido do subtítulo “Os jornalistas praticaram a ormetà em relação a Dominique Strauss-Kahn? Houve conivência entre os jornalistas e DSK?”

Num dos artigos, o jornalista Nicolas Beau relembra que seus colegas praticaram a omertá por 14 anos, escondendo da opinião pública francesa o que sabiam: que o então presidente da República François Mitterrand tinha uma filha fora do casamento; que a protegia às custas do contribuinte francês (com um esquema de segurança); e da cumplicidade dos jornalistas, impedidos de publicar a história por respeito à lei que reza que “todo cidadão tem direito ao respeito de sua vida privada”.

Os jornalistas sabiam das relações extraconjugais dos presidentes Giscard d’Estaing e Jacques Chirac, e nunca uma linha sequer saiu nos jornais durante os respectivos mandatos. A mulher de Chirac mencionou as relações extraconjugais do marido em um livro de entrevistas a Patrick de Carolis, publicado quando ele ainda estava no poder.

Só até a porta do quarto

“A informação para na porta do quarto de dormir”, escreveu o semanário Le Canard Enchaîné em seu editorial do primeiro número depois do “affaire DSK. O jornalista Franz-Olivier Giesbert, diretor da revista Le Point defende a tese de que como não havia nenhum caso de delito, a imprensa não tinha que investigar a vida sexual de Dominique Strauss-Kahn, assim como não tem de investigar a vida de quem quer que seja.

A exceção à lei do silêncio foi o jornalista de Libération, Jean Quatremer, que escreveu no seu blog em 2007, logo depois da nomeação de Strauss-Kahn para a direção do FMI: “O único problema de Strauss-Kahn é sua relação com as mulheres. Apressado, ele beira frequentemente o assédio. Uma fraqueza conhecida da mídia, mas da qual ninguém fala…”

O único que teve a coragem e a audácia de comentar, em 2009, com um humor cáustico, a fama de Don Juan do então diretor do FMI foi o humorista Stéphane Guillon, numa crônica que fazia diariamente na estação de rádio France Inter. As alusões e os trocadilhos do genial texto de Guillon desagradaram ao poderoso DSK. Entrevistado ao vivo poucos minutos depois da crônica, Dominique Strauss-Kahn demonstrou seu descontentamento no ar. Poucos dias depois, o humorista foi demitido da rádio, uma das estações que fazem parte da estatal Radio France. A demissão provava que para o poderoso DSK “jornalista bom é jornalista calado”.

A quem compreende o francês sugiro o vídeo de Stéphane Guillon lendo sua crônica (gravado ao vivo) e a reação de DSK neste link.

Pressões da assessoria

No livro Sexus politicus, lançado em 2006, que analisa a sexualidade dos políticos franceses, os jornalistas Christophe Deloire e Christophe Dubois escreveram um capítulo dedicado a DSK e nele mencionavam, sem dar o nome dela, o caso da jornalista Tristane Banon, com quem Strauss-Kahn marcou um encontro para uma entrevista. Ao chegar, a jovem descobre que o apartamento é uma garçonnière com um sofá e uma cama como únicos móveis. Tristane contou que DSK tentou estuprá-la. Esse caso era conhecido de inúmeros jornalistas – que fizeram um silêncio ensurdecedor. O advogado da jornalista justifica: “É aterrorizador se opor a alguém como Dominique Strauss-Kahn”.

Depois do atual affaire, o Libération lembrava que El País publicara um artigo de seu correspondente em Paris no qual atribuía a Sarkozy a recomendação feita a DSK, em 2007, logo depois de sua nomeação para o FMI: “Cuidado, nos Estados Unidos não se brinca. Evite entrar sozinho num elevador com uma estagiária. Você sabe de que eu estou falando. A França não pode se permitir um escândalo”.

Na Itália, o jornal do irmão de Berlusconi, Il Giornale, atacou duramente os franceses num editorial: “Strauss-Kahn era de fato um homem doente que não foi impedido a tempo, pagando paradoxalmente pela sutil hipocrisia de uma França onde a imprensa não hesita em dar lições de transparência e moralidade aos outros, mas que diante de seus poderosos – seja Strauss-Kahn ou Sarkozy – se mostra extraordinariamente covarde. Covarde até a omertà”.

O Times de Londres escreveu que os “britânicos podem ser pudicos em relação ao sexo enquanto os franceses são fascinados pelos sedutores políticos”. Para o diário britânico, o escândalo DSK pode ser visto “como o machismo no banco dos réus, a cultura francesa do segredo que considera que ser mulherengo faz parte de uma longa tradição francesa: liberté, égalité, infidélité”.

Na Newsweek, Michelle Goldberg escreveu que o silêncio da imprensa francesa que protegia DSK lembra uma conspiração para permitir a um homem poderoso a exploração de mulheres desprotegidas. “E os defensores de Strauss-Kahn, entre eles o eminente Bernard-Henri Levy, aparecem não como humanistas refinados, mas como membros de um clã de personalidades narcísicas dotadas de um sentimento desmesurado de que tudo lhes é permitido”.

Os escrúpulos dos jornalistas não se limitavam aos escândalos sexuais de DSK. A omertà funcionava em todos os níveis. Quando o jornal France-Soir revelou – poucos dias antes do escândalo de Nova York – que os ternos de DSK custavam até 30 mil dólares, feitos pelo mesmo alfaiate de Barack Obama, em Washington, a agência France Presse confirmou a informação, mas a jornalista que fez a investigação sofreu todas as pressões imagináveis dos marqueteiros que cuidam da imagem do ex-chefe do FMI.

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Jornalista