A imprensa alternativa foi uma página em branco no ano em que se relembrou o 40º aniversário do golpe militar no Brasil. Nem mesmo as revistas Caros Amigos e Reportagem, cujos editores participaram diretamente da experiência alternativa da década de 1970, produziram matérias especiais. Nelas, mereceram destaque o golpe de 1964 e os 50 anos da morte de Vargas, um mimetismo da grande imprensa. O vazio documental e histórico em relação a alguns temas parece sinalizar o fim de mais um ciclo alternativo na imprensa brasileira, simbolizado com o fechamento do Pasquim21, em julho deste ano.
Em crise, capengando nas pequenas estruturas, as novas safras apresentam de fato uma alternativa de conteúdo, com pauta diversificada, mas minimizam o debate político quando a crítica recai sobre o governo Lula, com sua suposta aura de esquerda. Os alternativos vêm perdendo ano após ano o princípio de opor-se ao discurso oficial, parâmetro que se estende aos nossos dias e aos nossos tempos – aparentemente sem repressão e sem ditaduras.
Graus de identificação à parte, manter-se vigilante em relação ao governo é condição para não se perder a dimensão política do jornalismo, uma das bandeiras da chamada imprensa alternativa. Quando o assunto do Conselho Federal de Jornalismo veio à tona, no início de agosto, a nova imprensa nanica, pós-anistia, silenciou e se omitiu do debate. Obrigada a se posicionar, com as discussões já minguadas, foi vítima da síndrome dos ‘novos cães de guarda’.
Charme intelectual
Reportagem (setembro de 2004) reservou importância quase confidencial ao tema do Conselho na seção de Cartas. Um leitor questionava a ausência de opinião a respeito do CFJ e do caso Veja x IstoÉ. Em pouquíssimas linhas, sem debate e na mesma seção, Reportagem – de quem se espera sempre uma abordagem diferente e aprofundada – fecha questão sobre o Conselho, com clichês: ‘CFJ é um antigo projeto da Fenaj; não é uma invenção governamental. Colunistas e políticos conservadores têm tentado difundir a tese de que existe um clima de censura e repressão às comunicações por parte do governo Lula, conclusão que nos parece sem cabimento’.
Ironicamente, na mesma edição, de número 60, Raimundo Rodrigues Pereira (ex-Opinião, ex-Movimento) comemora os cinco anos de Reportagem defendendo a tese de que faz ‘um jornalismo alternativo e popular’. Mas, diferentemente da década de 1970, a imprensa alternativa de hoje sobrevive da publicidade oficial. A revista é uma das raras a fazer críticas diretas ao governo Lula. Recuou, fez concessões estratégicas e promoveu uma assepsia na revista: apagou dos títulos, subtítulos e olhos das matérias o nome do governo Lula. Crítica pode, mas com menção rápida no corpo do texto, nas entrelinhas, para o leitor inteligente com fôlego e capacidade de inferir.
A idéia de popular, uma alternativa contra a ‘imprensa de monopólios’, não encontra muito respaldo na revista. Predomina um certo charme intelectual, clássico e até elitista que lembra editorialmente a revista Opinião (1972), um dos mais influentes jornais alternativos durante o regime militar, editado pelo mesmo Raimundo Pereira. O semanário era um misto de publicações acadêmicas e jornalísticas; avançou naquilo que se convencionou chamar de ‘jornalismo investigativo’, antecipando-se à grande imprensa com a publicação de matérias sobre defesa do consumidor e do meio ambiente e de denúncias sobre abusos na venda de medicamentos, provocando uma CPI na época. Assim como a revolucionária Opinião, Reportagem parece abarcar o mesmo elo de comunicação entre intelectuais e jornalistas, incompatível com o ‘jornalismo alternativo e popular’ apregoado por Pereira.
Amnésia súbita
Caros Amigos, depois das mortíferas críticas de César Benjamin ao governo, com ‘A dialética da empulhação’ e ‘O triunfo da razão cínica’, este último seguido de um pedido de desculpas do autor no site, a revista empalideceu, ficou mais anêmica nas críticas, inversamente proporcional ao número de anúncios governistas, que cresce e alimenta de hemácias a Caros Amigos, idealizada por Sérgio de Souza (ex- Grilo, ex-Ex, ex-Canja e ex-Mais Um).
A revista continua existindo editorialmente, mas começa a agonizar como projeto alternativo. A gota d’água foi a capa de outubro com o ‘Guardião do Planalto’, Ricardo Kotscho, assessor de imprensa do governo. O nome de Kotscho seria mais do que oportuno para falar da relação conflituosa entre imprensa x governo e sobre o Conselho Federal de Jornalismo. Críticas pontuais aqui e o dia-a-dia do entrevistado ali dão o tom da entrevista ‘risonha e franca’, que elegeu o CFJ como assunto fora de pauta.
O alternativo se omite e deixa a Marilene Felinto, na mesma edição de Kotscho, a tarefa de defender o governo. Com um título confuso, ‘Conselho Federal da meia dúzia de famílias donas do jornalismo no Brasil’, como se o conselho fosse uma proposta da ‘grande mídia’, Marilene se porta como ‘cão de guarda’. Não discute e tangencia o assunto sobre o CFJ. Aliás, depois que saiu da Folha e foi para a Caros Amigos, a articulista tem sido monotemática: só esbraveja obviedades sobre os políticos do PSDB e da grande imprensa paulista. Até agora não escreveu uma linha crítica sobre o governo. Fala muito bem do passado, utiliza sua veia ácida contra as oligarquias e a grande imprensa, mas sofre de amnésia súbita quando o assunto é o governo Lula e o PT.
Estética do desencanto
A revista tinha encontrado uma saída inteligente para manter o princípio da crítica. Criou o ‘Debate necessário’, uma série de entrevistas colocando lado a lado opositores e governistas. As críticas não são mais visíveis, são quase imperceptíveis, reduzidas às tiradas do pasquineiro Carlos Castelo Branco ao ironizar que ‘o Conselho Federal de Jornalismo vai fazer com a imprensa o que a MTV fez com o rock’.
Ao vazio deixado por quase toda a mídia na cobertura dos 40 anos do golpe, colocando na vala comum o melhor que o Brasil já produziu em termos de imprensa, fica aqui registrada minha homenagem póstuma à imprensa alternativa da década de 70, que revolucionou a linguagem e a forma de se produzir informação de qualidade no país, possibilitando a criação de uma estética para o jornalismo.
Infelizmente, as novas gerações aprendem que coragem e rebeldia são incompatíveis com o atual estágio da imprensa brasileira, na qual prolifera a praga do jornalismo de serviços, de entretenimento, cosmético, sem rupturas. Por enquanto, na ausência de rebeldias, a única estética que os alternativos têm difundido, em sintonia com o atual governo, é a do desencanto.
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Jornalista, pesquisador do tema livro-reportagem no Brasil