Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

A orfandade informativa das vítimas da avalanche

Estivéssemos falando em termos literários, o que os jornais fazem ao cobrir as mortes decorrentes da tragédia em Minas Gerais não passaria de eufemismo. Mas como o assunto é jornalismo, os termos que devemos esperar, imprescindivelmente, giram entorno de negligência e responsabilidade, ou até mesmo crime. Coisa que a imprensa em geral (entenda-se, os jornais mais consumidos) tem passado longe de fazer.

Até mesmo um jornal digno de respeito, entre outros motivos, por tornar públicos os textos da maior jornalista-colunista desse país, Eliane Brum – sim, a pessoa mais competente nesse ramo é uma mulher –, o El País Brasil, tem caído no embuste de veicular os acontecimentos ligados à tragédia do vazamento de resíduos da barragem administrada pela Samarco-Vale-BHP como um “acidente”. Não é preciso ser linguista para perceber o efeito semântico-pragmático que essa palavra causa; o de que acontecimentos dessa natureza ocorrem, sem que haja, necessariamente, um responsável. Bem semelhante à expressão “crise hídrica”, cunhada para se referir à seca de São Paulo e não instigar uma população a cobrar da administração pública os danos causados pela falta de água.

Os motivos dessa condescendência da imprensa são muitos e provavelmente nunca conheceremos a metade deles. Mas um, ao menos, não é difícil de deduzir. Empresas como a Samarco, ou seja, mineradoras, investem quantias substanciais de dinheiro em campanhas eleitorais de partidos políticos. Logo, poucos veículos de comunicação, ao menos os mais bem projetados na formação do pensamento coletivo, farão o trabalho que deve ser feito.

As consequências da desesperança

Apelar para a comoção coletiva faz parte da intenção de humanizar os fatos, mas ficar apenas nesse apelo e não cercar, apurar, perguntar, nomear, pressionar, fazer aparecer os responsáveis pela tragédia, que não pode ser reduzida a acidente, exigir que se incrimine, se for o caso etc., não consiste em humanizar o fato, mas única e tão somente em sensacionalizá-lo. Esse é o procedimento historicamente verificado no nosso país toda vez que uma tragédia nos recai. E, como é do nosso modo de ser, acabamos nos ocupando das tragédias por pouco mais ou menos de uma semana. Talvez nunca tenhamos sido instigados a pensar na condescendência da imprensa frente à morte de inocentes causadas por negligências de grandes empresas. Eis um sintoma de um país mal instruído formalmente. Mal educado.

Soma-se a isso não apenas o testemunho silencioso, mas a participação ativa dos governos, sem exceção de partidos políticos, nessas mortes que amanhã esqueceremos. Isso porque, no Brasil, ganham o direito de governar nossas vidas aqueles que evocam discursos desenvolvimentistas. O desenvolvimentismo praticado no Brasil é esse que ganha tacitamente a isenção perante a vida alheia. Dito de maneira mais clara: qual a efetiva importância se alguém, ou uma família inteira, morre diante da grandeza de um Estado que se desenvolve? A resposta é óbvia, a história mostra: para nosso conceito deturpado de progresso, nenhuma importância. Assim matamos populações indígenas sem derramar lágrimas, assim esqueceremos rapidamente dos mortos de Bento Rodrigues.

O tom complacente da imprensa, essa mais aparelhada para formar pensamentos, é responsável, sim, por nossa ignorância frente à tragédia. Isso também não consiste em novidade. O que não somos estimulados jamais a interpretar é o porquê disso. Por que nos comovemos vendo no noticiário histórias e lágrimas de pessoas que perderam parentes, casas, bichos e a esperança, e na semana seguinte não nos importaremos com as consequências dessa desesperança toda? Porque a mesma imprensa que negligencia, ou melhor, dissimula seu mais importante trabalho nos convencerá de que o assunto mais urgente, claro, é a crise econômica.

O tom que os jornais dão às coberturas

Mal nos damos conta de que o excesso de tempo gasto com um assunto que mal entendemos, a economia, tem dividido e deseducado o brasileiro na busca de um país melhor para se viver.

As péssimas discussões que vimos protagonizando, em redes sociais mesmo, sobre economia e política interessam sobremaneira àqueles que nem acreditam mais em direita e esquerda, mas que adoram nos ver acreditando que é isso que está em questão. Quando na verdade os assuntos que realmente nos preparariam para discutirmos em melhores condições até mesmo a política econômica e outras formas de dominação do Estado são justamente aqueles que a imprensa trata de sensacionalizar para esquecermos na semana seguinte, ou até mesmo de silenciar. Termos nos tornado “economistas” e “cientistas político” de Facebook não tem nos deixado pisar outro solo de debate democrático e nos emburrece para assuntos mais urgentes (Eliane Brum nos atenta para isso). Mal percebemos que esse maniqueísmo todo que temos alimentado em redes sociais é fruto ainda de uma forma de pensar que os governos e a imprensa reservou para nós.

O povo que se une para chorar os mortos na tragédia é o mesmo que se dividirá em poucos dias para defender passionalmente o seu “representante” político. Até aí, tudo bem. O problema, e é aqui que a imprensa deixa de ser apenas negligente para ser atuante, é que os jornais imprimirão às coberturas que comovem o país um tom coerente aos interesses das empresas que garantem o sucesso das campanhas políticas de nossos governantes. Ou seja, passadas as lágrimas, voltamos ao nosso lugar mais uma vez, que é o lado oposto de qualquer governo, das empresas desenvolvimentistas e da imprensa que atinge as massas. Não fomos nós que escolhemos assim, são eles que nos reservam esse lugar, porém, claro, sem deixar de nos fazer acreditar que seremos, em períodos de eleição, representados por alguns deles.

Talvez por isso seja tão difícil ver justiça ser feita às famílias desgraçadas pela lama em Bento Rodrigues porque quem deveria intervir por elas não está do nosso lado.

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Cristiano de Sales é professor de Literatura