A semana passada ameaçou terminar sob forte tensão, aquecida pelas manchetes dando conta de que uma entrevista do presidente do Partido Liberal, ex-deputado Valdemar Costa Neto, à revista Época, e o depoimento do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios, haviam lançado o presidente da República no olho do furacão. Toda a imprensa destacou a declaração de Costa Neto de que o então candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu candidato a vice, José Alencar Gomes da Silva, estavam presentes à reunião na qual se tratou de repasse de verbas para a campanha do Partido Liberal.
Apenas um detalhe perverso: o tom das manchetes e dos comentários na TV, a partir das chamadas de capa da revista Época, induzia a opinião pública a entender que a negociação se referia ao tema central do atual escândalo político – o pagamento de propinas para deputados apoiarem propostas do Executivo levadas a votação no Congresso.
A rigor, porém, a entrevista de Costa Neto se referia, do começo ao fim, apenas ao planejamento de custeio da campanha eleitoral. O ex-deputado não havia confessado um crime, apenas explicava como havia combinado a partilha dos recursos para a campanha, ressalvando que Lula e Alencar se retiraram do ambiente quando a conversa passou a tratar de valores. Da Época para as manchetes de jornais, passando por interpretações indignadas de âncoras da TV e títulos absolutamente afirmativos das edições online, tudo apontava para o envolvimento do presidente em conchavos ilegais. O vice-presidente, citado na entrevista, foi poupado.
O próprio Valdemar Costa Neto veio a público, no sábado (13/8), para desmentir a interpretação forçada de suas palavras. Em vão. A imprensa não lhe deu mais do que um registro nas ‘últimas notícias’ da internet. Nas edições de domingo, nada se viu que se comparasse ao estardalhaço com que a versão distorcida havia ganhado as páginas e as telas desde a sexta-feira. A imprensa errou em peso, o que descarta a hipótese do erro e reforça o que se tem dito aqui – que a mídia se move na direção da confirmação de suas próprias premissas, não necessariamente pela busca da verdade.
Negativa e pessimista
O conjunto de indicadores econômicos, palpites e especulações que a imprensa chama de ‘mercado’ reagiu com nervosismo. A cotação do dólar saltou 3,20%, o índice das ações mais negociadas na Bolsa de Valores (Bovespa) caiu 1,84%, o mercado futuro de juros apontou uma elevação em alguns tipos de contratos.
Toda a imprensa, incluídos os comentaristas dos principais noticiosos da televisão, creditou o solavanco à crise política, associando linearmente a entrevista, o depoimento e especulações de representantes oposicionistas sobre a hipótese do impeachment do presidente. No entanto, os jornais de economia e os cadernos especializados dos grandes diários de São Paulo e do Rio, bem como a maioria dos sites especializados consultados pelo observador, traziam, com menor ou maior destaque, a informação de que a volta do Banco Central ao mercado de câmbio, anunciando leilão de compra de dólar à vista, era a causa principal da oscilação no valor da moeda americana. Além disso, o dólar estava sob influência relevante dos preços internacionais do petróleo. Boletins de bancos de investimento acrescentavam que a Bovespa havia se mantido relativamente estável, dentro do padrão de recuperação que vem apresentando desde julho.
Um consultor de investimentos ouvido pelo observador explicou que, em circunstância de desassossego, alguns investidores mais nervosos deixam o mercado de ações e tentam proteger parte de seu patrimônio em dólar. Acrescentou que, dada a densidade apresentada pelo noticiário para os fatos políticos, tanto se podia dizer que o mercado havia sido abalado pelo noticiário protagonizado por Mendonça e Costa Neto, como também se podia creditar as oscilações à própria natureza dos fatos econômicos, nos quais se incluem fatores internacionais. A escolha, neste caso, é do jornalista, ponderou.
As manchetes ainda vociferavam nas bancas, sexta-feira, quando o presidente apareceu na televisão para apresentar desculpas à nação. Quase imediatamente, o mercado começou a reagir. Ainda antes de serem publicadas as interpretações colhidas pela imprensa para a fala de Lula, a Bolsa havia entrado em recuperação, encerrando os negócios na pontuação mais elevada do dia, consolidando o processo de recuperação com um ganho total de 3,49% em agosto. O dólar desacelerou e retornou praticamente aos patamares da semana anterior, e o juro futuro se estabilizou.
Temos, então uma equação a resolver: o mercado realmente sofreu turbulências por conta do noticiário político, e a imprensa tem forte influência sobre o comportamento dos investidores, ou o que houve foram movimentos mais ou menos naturais e nem tão graves, como relatam os boletins especializados? Por outro lado, a rápida recuperação dos mercados, iniciada e consolidada ainda antes que a mídia, mesmo a televisão e o rádio, pudesse dar uma interpretação – que acabou sendo, majoritariamente, negativa e pessimista – para os efeitos da fala do presidente, indica que os agentes financeiros pensam por si mesmos, independentemente do que diz a imprensa?
Nenhuma retificação
Já se disse aqui, com base em depoimentos de analistas financeiros, que as dificuldades políticas do presidente Lula – desde a crise de fevereiro de 2005, quando as disputas internas no PT acabaram por eleger presidente da Câmara o deputado Severino Cavalcanti, do PP – não representam mais do que 5% dos fatores que influenciam o mercado. O que falta resolver é: qual o peso real da versão oferecida pela imprensa sobre a visão de realidade da população em geral?
O pensador francês Pierre Bourdieu, ao tratar diretamente do papel da imprensa ou, transversalmente, ao lidar com seu tema predileto, as formas simbólicas de dominação desenvolvidas no ambiente social, já lançou luz suficiente para nos fazer entender que a influência da mídia sempre necessita de um contexto psicológico no qual a notícia se encaixe como integradora de desejos ou temores. Ou seja, a imprensa se vale dos medos, desejos, frustrações e esperanças da sociedade para incrustar sobre a opinião geral suas próprias opiniões ou premissas. Para o bem ou para o mal.
Essa influência é tão menos poderosa quanto mais racional for o receptor da notícia. Talvez seja esse o motivo pelo qual o chamado mercado não se abala na proporção dos tremores produzidos pela gravidade extrema da crise política. O mercado é infinitamente menos sutil e complexo do que a sociedade, do qual é apenas uma parte. Essa influência pode ser muito mais poderosa sobre a população em geral, especialmente sobre os mais vulneráveis, como os jovens ansiosos por um emprego e um lugar no mundo, ou por aqueles menos providos, para os quais a esperança de dias melhores é praticamente a única razão de viver.
O depoimento do publicitário Duda Mendonça, no qual o marqueteiro predileto da mídia – que sempre soube, como ninguém, usar o deslumbramento da imprensa com os indivíduos tidos como bem-sucedidos para ganhar ainda mais dinheiro – confessou ter se valido de conta bancária no exterior para receber o que lhe era devido pelo PT, foi o ponto mais quente da atual safra de revelações sobre práticas escandalosas do partido do presidente. Mas o que levou as suspeitas para perto de Lula foi a interpretação dada à entrevista de Valdemar Costa Neto.
Uma vez que o próprio autor das declarações veio a público, no sábado, para retificar a leitura que a imprensa havia feito de suas palavras, esperava-se que o teor do noticiário fosse retificado no domingo. Isso não aconteceu. Pelo contrário, o noticiário seguiu ‘repercutindo’ uma revelação que, afinal, nunca havia acontecido.
Sonhos de mudança
Como, segundo Bourdieu, é preciso pavimentar o sentimento coletivo para que a mensagem seja efetiva, pode-se afirmar que o que estamos assistindo é um processo deliberado e inexorável de quebrantamento dos espíritos. Como se os fatos em si não fossem, de sua própria natureza, suficientes para conduzir a sociedade da indignação ao desalento, e do desalento à descrença, tem o cidadão comum que lidar com a manipulação e o rolo compressor que não admite revisões – porque não veremos nem naquela coluna chamada ‘erramos’ a admissão de que o ex-deputado Costa Neto não disse efetivamente o que disseram que havia dito.
Nessa direção, estamos claramente ampliando o fosso entre os que têm acesso a informação de qualidade, e podem tirar vantagens tanto da estabilidade quanto da turbulência, e aqueles que sempre perdem. Quanto a estes, ganhariam se o noticiário lhes desse a verdadeira dimensão dos nossos problemas políticos. Aprenderiam a escolher, pelo voto, seus representantes e seus dirigentes. Como vai a coisa, a imprensa não contribui para melhorar o senso crítico e segue, a grande maioria da população, decidindo com o fígado.
Diante da versão de que os políticos são todos iguais, que nos passam todos os dias, cresce o desânimo. Quando, enfim, estiver a massa dos eleitores envergonhada de sua própria esperança, quando a sociedade manifestar sua plena decepção no processo democrático, estaremos reduzidos da condição de povo à circunstância de mercado. Teremos deixado de ser cidadãos e seremos consumidores, investidores, vendedores e compradores. Então, quem sabe a mídia nos apresente o novo salvador da pátria – aquele candidato sisudo, resolvedor de problemas, aquele que não acena com um projeto de nação, aquele que não ousa sonhar alto. Apenas um bom gerente de um projeto político preexistente, o único projeto em vigor neste país espoliado desde a primeira pegada do primeiro europeu em nossas praias. Um candidato do qual ninguém haverá de temer que acorde um dia com idéias visionárias ou com sonhos de mudança nos eixos da sociedade.
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Jornalista