Não é raro que uma notícia da grande imprensa diária chegue com notável atraso diante de fatos de velho conhecimento no âmbito comunitário. É o caso da notícia (O Globo, 6/1/2008) de que o dia-a-dia das operações da polícia carioca aparece, em cenas reais, em DVDs vendidos por camelôs no centro do Rio.
Tropa de Elite 3 mostra, ao preço de 7 reais, as incursões de homens identificados como policiais do Serviço Reservado da Polícia Militar (P2) em morros de Niterói. Nada se oculta: os rostos dos policiais são descobertos e as ‘atrações’ são tiroteios, prisões, remoção de corpos, confissões de bandidos etc. Na abertura do vídeo, o deputado Wagner Montes, atual líder nas pesquisas de preferências para a prefeitura do Rio, grita o seu bordão: ‘Escracha, P2!’
O vídeo, repetimos, já era velho conhecido de aficionados do tema e o atraso da notícia importa apenas como sintoma de um descompasso entre as redações dos jornais e a vida concreta da cidade. Vale aqui pensar o assunto com o pano de fundo da advertência de Alberto Dines a editores jornalísticos [ver, neste Observatório, ‘Ano novo com cara de velho‘] no sentido de que ‘na virada do ano convém verificar as mazelas rotineiras antes que se convertam em doenças incuráveis, terminais’.
O cotidiano e a pauta jornalística
Dines comentava a excelência da revista piauí, cujo editor, o documentarista João Moreira Salles, havia frisado, numa entrevista ao Observatório da Imprensa na TV (2/10/2007), a importância de se apurar extensamente os fatos. É verdade que piauí é uma revista mensal, sem a urgência do dia-a-dia, mas a valiosa observação de Dines é de que a grande imprensa não pode ignorar o seu estilo, isto é, sair das redações para acompanhar de perto a vida concreta da cidadania, por meio de textos mais elaborados e reflexivos. Textualmente:
‘Nossa grande imprensa simplesmente fez a opção pelo picadinho e pelo feijão-com-arroz, não tem vontade de investir num prato especial porque este criaria um contraste fatal para o cardápio costumeiro. O jornalismo de qualidade, uma vez adotado, não tem volta, é irreversível.’
Onde se encaixam as ‘mazelas rotineiras’ na citada notícia dos DVDs? Em princípio, na forma fragmentária em que ainda se informa sobre o caos urbano em todas as suas variáveis. O jornalismo diário continua a ‘gritar’ o fato social – perdendo com freqüência as chances de dar-lhe densidade por meio do aprofundamento cognitivo –, mais atento às regras históricas do estamento profissional do que ao dia-a-dia comunitário. A percepção do conturbado cotidiano carioca por grupos de opinião diferenciados está muito distante do que deixa transparecer a pauta jornalística.
O público como sujeito coletivo
Há um notável esquecimento do campo ‘extra-jornalístico’ no processo de apuração e comunicação dos fatos sociais. A construção do acontecimento não se efetua apenas no campo jornalístico, como bem ressalva a francesa Jocelyne Arquembourg:
‘Os acontecimentos são certamente fruto de um trabalho de constituição coletivo, mas eles imbricam também a participação de atores e de um público que não é apenas uma massa de consumidores de informações’ (em Dossiers de l’Audiovisuel, pág. l04, Paris).
Ou seja, os jornalistas são apenas uma das várias categorias de atores mobilizadas para a determinação dos fatos e sua posterior transformação em acontecimento de jornal. Além deles e de suas audiências, há principalmente um público, que pode ser entendido como uma esfera de conhecimento e idéias, em que indivíduos particularmente atentos ao que se torna visível na cena de um espaço público, tomam posição ou se comprometem com uma causa coletiva qualquer.
Diferentemente de uma audiência, portanto, o público constitui-se, ainda que provisoriamente, como um sujeito coletivo e pode difratar-se ou diversificar-se em torno de experiências variadas. São vários, portanto, os públicos, e os jornalistas apenas uma das várias categorias de atores mobilizadas para a determinação dos fatos e sua posterior transformação em acontecimento comunicável.
‘Coisas que assustam Satanás’
Ora, esse público emerge quando o contato com a corporação profissional não se faz apenas por sondagens ou pesquisas de opinião, mas basicamente pelo contato concreto dos jornalistas com as ruas e as instituições. O caminho certo para isto é a apuração continuada dos fatos e o incremento da sensibilidade comunitária, propiciados pela reportagem.
O DVD intitulado Tropa de Elite 3, que se acha há muito tempo nas ruas do Rio, poderia ser noticiado apenas como sintoma de dois fatos sociais maiores, para os quais só agora o poder público parece estar acordando: (1) o agravamento da violência urbana pela progressiva falta de controle sobre o tráfico de drogas e os assaltos; (2) a transformação desse descontrole em espetáculo.
A promiscuidade entre os ilegalismos e a chamada ‘sociedade civil’ é alarmante e carece de aprofundamento informativo. São realmente sintomáticos os acontecimentos em torno da Escola de Samba da Mangueira. Pior ainda, a notícia sobre a canção entoada por crianças de sete anos, e mais no jogo Laser Shot, onde se atira nos inimigos com pistolas de raio laser:
‘Homem de preto, o que é que você faz?/ Eu faço coisas que assustam Satanás!/ Homem de preto, qual é a sua missão?/ Entrar pela favela e deixar corpo no chão!’
Isto apareceu numa notinha da coluna ‘Gente Boa’, do Globo. Deveria ter sido a manchete do dia.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro