Numa nova investida contra os meios de comunicação do país, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, apresentou na terça-feira (24/8) um relatório de 400 páginas [ver abaixo], revelando supostos vínculos entre os principais jornais e a ditadura (1976-1983), para compra da Papel Prensa. A divulgação do documento provocou reações de entidades de imprensa, da oposição e dos principais jornais do país, que manifestaram preocupação com a liberdade de expressão argentina.
De acordo com a denúncia do governo, cuja bandeira tem sido a defesa de direitos humanos, trata-se de mais um crime do regime militar.
Tanto os políticos da oposição, quanto os jornais La Nación e Clarín, garantem que é mais uma manobra do Estado para controlar a imprensa.
Durante o fim de semana, os diários publicaram editoriais denunciando as manobras do governo para coibir a mídia, comparando a política de Cristina com a do venezuelano Hugo Chávez.
Na segunda-feira (23), os jornais receberam apoio da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e da Associação Internacional de Radiodifusão (AIR), que manifestaram preocupação com as ‘ameaças à liberdade de expressão na Argentina’.
– Cristina Kirchner inventa causas de direitos humanos e inicia processos de lesa-Humanidade para ficar com bens de outros e, assim, dominar a opinião pública. Seu objetivo é apoderar-se da Papel Prensa. Sem papel, não existe imprensa – afirmou Elisa Carrió, líder da Coalizão Cívica, da oposição.
Governo questiona legitimidade da compra
Criada em 1972, a Papel Prensa fabrica e fornece papel para 170 jornais argentinos, abastecendo 75% do mercado. Seus principais acionistas são Clarín (49%), La Nación (22,5%) e o Estado argentino (27,5%). Agora, o governo questiona a legitimidade da aquisição da empresa – ocorrida há 34 anos –, alegando que os antigos donos foram praticamente obrigados a vender porque estavam sendo perseguidos pela ditadura.
Segundo Beatriz Paglieri, representante do governo na direção da Papel Prensa, o relatório de 400 páginas contém ‘provas irrefutáveis da cumplicidade entre a ditadura e os donos dos jornais Clarín, La Nación e La Razón‘, que teriam se aproveitado da conjuntura política para comprar a empresa a um bom preço.
Num comunicado à imprensa internacional, o Clarín e o La Nación defenderam-se do que garantem ser ‘falsas acusações’.
Segundo os diários, elas fazem parte de um plano para expropriar a empresa – na qual investiram US$ 140 milhões – para poder ‘controlar e manipular’ os meios de comunicação.
A Papel Prensa pertencia a David Graiver, empresário e banqueiro que tinha ligações e negócios tanto com os militares quanto com o grupo guerrilheiro Montoneros. Em agosto de 1976, poucos meses após o golpe militar, ele morreu num acidente aéreo no México. Seu império, que incluía bancos na Bélgica e nos Estados Unidos, começou a desmoronar, e os credores começaram a bater na porta da viúva, Lídia Papaleo, que vendeu ativos para saldar dívidas.
Mais um golpe ao Clarín em uma semana
A empresa foi vendida em novembro de 1976 aos jornais Clarín, La Nación e La Razón.
Cinco meses depois, em março de 1977, Lídia Papaleo e outros parentes de seu marido foram presos e torturados pelos militares, que investigavam as ligações de David Gravier com os Montoneros.
– Quando Lídia Papaleo vendeu a Papel Prensa, estava em liberdade. Foi presa quase meio ano depois por causa da ligação de David Graiver com a guerrilha. E quando a ditadura caiu, ela não saiu à frente para dizer que tinha sido obrigada a vender a empresa. O governo quer transformar este caso num crime de lesa-Humanidade para dar mais um golpe nos meios de comunicação – disse ao Globo um advogado do Grupo Clarín, sob condição de anonimato, acrescentando que não é coincidência que o governo faça da denúncia um show público.
O relatório sobre a Papel Prensa foi apresentado num ato na Casa Rosada para o qual foram convidados empresários, políticos, diplomatas e jornalistas. Será o segundo golpe sofrido pelo Grupo Clarín em menos de uma semana: na quinta-feira passada (19/8), o governo cassou a licença de Fibertel (uma das empresas do maior conglomerado de mídia do país), para prover serviços de internet a seus mais de um milhão de clientes.
Os conflitos entre o governo e imprensa datam de 2008, quando o Clarín apoiou os ruralistas num confronto com Cristina Kirchner. Em outubro de 2009, foi aprovada uma polêmica lei apresentada pelo governo contra os monopólios da mídia. Além disso, a proprietária do grupo, Ernestina Herrera de Noble, está sendo investigada pela Justiça: ela é suspeita de ter adotado, na ditadura, dois filhos de desaparecidos.
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Cristina investe contra jornais
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, lançou na terça-feira (24/8) sua mais dura ofensiva contra os meios de comunicação.
Num discurso transmitido em cadeia nacional de televisão, acusou os dois principais jornais do país, o La Nación e o Clarín, de terem aproveitado o clima de terror da última ditadura (1976-1983) para apropriar-se de forma irregular da empresa Papel Prensa – fabricante de papel para 170 jornais argentinos, abastecendo 75% do mercado. As provas que, segundo ela, vinculam os jornais ao regime militar fazem parte de um relatório de 233 páginas que o governo apresentará à Justiça e podem resultar na expropriação da companhia.
Ao mesmo tempo, a presidente prometeu enviar um projeto de lei ao Congresso declarando ‘de interesse público’ a produção e a distribuição de papel, que a seu ver não podem ficar nas mãos de um monopólio.
Para o ato, na Casa Rosada, foram convidados ministros, políticos, empresários, representantes de organizações de direitos humanos, jornalistas e diplomatas estrangeiros – entre eles o embaixador do Brasil, Enio Vieira. Adotando uma postura de advogada (profissão que exerceu antes de ser eleita senadora e presidente), Cristina Kirchner usou um editorial – publicado no domingo (22) no Clarín – intitulado ‘Quem controla a Papel Prensa controla a palavra impressa’. O editorial – assim como os comunicados publicados na terça-feira na primeira página do Clarín e do La Nación – denunciava a manobra do governo que buscaria vincular a compra da empresa aos crimes cometidos durante a ditadura, com o objetivo de apropriar-se da Papel Prensa e controlar a imprensa independente.
– Concordo com o título. É verdade que quem controla a Papel Prensa controla a palavra impressa. E a única empresa que produz pasta de celulose para fabricar papel de jornal para distribuição e comercialização é justamente uma empresa sob monopólio – disse a presidente.
Em nota, veículos denunciam manobra
Cristina Kirchner acusou a empresa de atender apenas aos interesses dos maiores acionistas – Clarín (49%) e La Nación (22,49%) – e de vender o papel que sobrava aos jornais do interior a preços mais altos.
Ou seja, na opinião dela, quem hoje controla a informação no país são os grandes grupos de comunicação de massa – especialmente o Grupo Clarín, crítico do governo e considerado inimigo número um da presidente.
O governo também questionou a compra da empresa, em 1976. Na época, a Papel Prensa pertencia ao banqueiro David Graiver, que morreu num acidente aéreo no México. Sua viúva, Lídia Papaleo, assim como seus parentes próximos – o irmão Isidoro Graiver e seus pais – foram ameaçados, presos e torturados.
– Li coisas assustadoras, que parecem parte de um thriller – disse Cristina Kirchner, ao relatar as atrocidades cometidas durante a ditadura, entre elas a tortura e as violações sofridas por Lídia Papaleo.
Antecipando-se ao discurso de Cristina Kirchner, o La Nación e o Clarín publicaram na terça-feira (24) um comunicado, na primeira página, denunciando aos leitores o que consideram ser uma manobra do governo para apoderar-se da empresa Papel Prensa e manipular a imprensa independente através de uma campanha de difamação. A empresa, lembraram, foi adquirida em 1976 – cinco meses antes da prisão de Lídia Papaleo – quando o Grupo Graiver estava enfrentando sérias dificuldades econômicas.
Os jornais desmentiram sua participação na prisão da viúva e dos parentes de David Graiver. A família, alegam, foi perseguida porque os militares suspeitavam que David Graiver tinha ligações com o grupo guerrilheiro Montoneros.
– O comunicado dos jornais de hoje é o mesmo que os três jornais (Clarín, La Nación e o extinto La Razón) publicaram no dia 19 de maio de 1977, quando manifestaram ante a opinião pública que tinham comprado a Papel Prensa com a autorização dos comandantes da Junta Militar e com a autorização do ministro da Economia, Martínez de Hoz – disse ao Globo, Osvaldo Papaleo, irmão de Lídia Papaleo.
Segundo ele, os donos dos jornais podem não ter participado da prisão e da tortura da família Graiver, ‘mas certamente sabiam de tudo o que estava acontecendo’. No comunicado, os jornais Clarín e La Nación negam qualquer ação para intimidar a família Graiver a vender a Papel Prensa.
‘Nunca, em 27 anos de democracia, a Papel Prensa recebeu qualquer questionamento administrativo ou judicial pela sua origem’, diz o texto. (Monica Yanakiew)
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‘O governo nos culpa por suas derrotas’
Entrevista de Eduardo Lomanto a Monica Yanakiew
O diretor de negócios do La Nación, Eduardo Lomanto, afirma que o governo argentino está realizando uma ofensiva para apropriar-se da empresa Papel Prensa – que fornece papel a 170 jornais argentinos – e assim controlar a imprensa independente.
Em entrevista ao Globo, ele conta sua versão dos fatos, dá informações de bastidores, além de citar o que considera manipulações do governo argentino contra a mídia local e em outras áreas, como a economia e a questão dos desaparecidos políticos.
O que motiva este novo confronto entre o governo e os jornais?
Eduardo Lomanto – O confronto começou em 2008, quando o governo quis aumentar o imposto de 35% cobrado às exportações de cereais. Como os meios de comunicação apoiaram o setor rural, o governo achou que houve um complô para impedi-lo de avançar com seu projeto. Em 2009, o governo perdeu as eleições legislativas e fez o mesmo diagnóstico: em vez de atribuir a derrota à gestão, culpou a imprensa.
Num editorial publicado hoje [terça, 24/8] em suas primeiras páginas, os jornais Clarín e La Nación afirmaram que a investigação sobre a aquisição da Papel Prensa, durante a ditadura, nada mais é que um plano para expropriar a empresa e controlar os meios de comunicação. Existem provas disso?
E.L. – As intenções do governo foram anunciadas pelo secretário do Comércio Interior, Guillermo Moreno. Há um ano, ele reuniu os diretores da empresa e disse que tinha um plano para tomar a companhia. Pediu confidencialidade, ameaçando quem abrisse a boca. Disse: ‘Aqui fora da porta tenho uns muchachos especialistas em partir a coluna e fazer saltar os olhos daquele que fale’. O plano, segundo ele, era tomar a empresa dos jornais, baixar seu valor, fazer uma intervenção ou estatizá-la. Ficamos sabendo por que um dos participantes contou o que aconteceu. Fizemos uma denúncia penal na Justiça e, a partir daí, começou a escalada para apropriar-se da Papel Prensa.
O governo afirma ter provas de que a família Graiver (dona da empresa) foi coagida pelos militares para vender a empresa em 1976, e que os jornais tinham conhecimento dessas pressões, mas preferiram ignorá-las e fechar um bom negócio. Que provas são essas?
E.L. – Não sei por que o governo tem feito tantas denúncias sem fundamento e tem mudado sua versão dos acontecimentos tantas vezes. Nas suas primeiras declarações, Lídia Papaleo (viúva de David Graiver, dono da Papel Prensa), disse que transferiu as ações aos jornais quando estava presa: os militares a tiraram da cadeia para que pudesse assinar os documentos de venda, e voltaram a prendê-la. Também disseram que os contratos não eram contratos – eram compromissos de venda. Exibimos os contratos, provando que eram válidos e que tinham sido assinados antes da prisão dela. Depois, mudaram a versão.
Disseram que tínhamos adulterado as datas. Mostramos que os contratos tinham sido publicados na imprensa na época. Agora admitem que assinamos os contratos cinco meses antes da prisão dos parentes de Graiver. Mas dizem que foi um esquema armado com os militares, para desvincular qualquer participação dos jornais na prisão e tortura da família Graiver. O estranho é que houve outras investigações, antes desta, e em nenhuma delas a prisão e tortura dos Graiver foi associada à compra da Papel Prensa.
Por que os militares não ficaram com a empresa de papel?
E.L. – Tentaram ficar, dizendo que Graiver não tinha morrido, porque jamais encontraram o corpo, e que os jornais, ao comprarem a empresa, estariam financiando os Montoneros, já que Graiver supostamente era banqueiro do grupo guerrilheiro. Naquele momento, como agora, fizemos uma campanha de comunicação muito forte, contra acusações que eram falsas. Recorremos a organismos internacionais. Naquela época, o governo recuou.
Por que o governo fez essa denúncia num ato público em vez de apresentar o resultado de sua investigação à Justiça?
E.L. – Querem dar o mesmo tratamento a este relatório que deram ao informe da Conadep (Comissão Nacional dos Desaparecidos), que investigou os desaparecimentos na ditadura argentina e possibilitou o julgamento das juntas militares. A investigação da Conadep foi dirigida por Ernesto Sabato, Prêmio Nobel da Paz. A investigação contra foi dirigida por Moreno e Beatriz Paglieri, a mesma pessoa que fez a intervenção no Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos) para manipular os dados da inflação. A intenção do governo é levar presos Hector Magnetto e Bartolomé Mitre (os presidentes do Clarín e do La Nación, respectivamente).
O que farão os jornais?
E.L. – Vamos esperar o ataque, ver de que somos acusados e recorrer à Justiça.
Essa foi a única ofensiva à imprensa?
E.L. – Não. A primeira foi a Lei de Meios, que supostamente democratiza a comunicação porque limita os monopólios. Na verdade, impede que haja uma rede nacional de televisão. Ou seja, na Argentina poderemos assistir à CNN e à Rede Globo, mas não poderemos assistir ao Todo Noticias (canal de notícias a cabo do Grupo Clarín). O que teremos será um mercado fragmentado, cheio de pequenas emissoras de rádio e televisão, que só sobreviverão com publicidade estatal. Ou seja, o Estado poderá facilmente controlar a informação. O último ataque, antes deste, foi quando cancelaram, na semana passada, a licença da Fibertel (uma das empresas do Grupo Clarín) para prover serviços de internet.
E a pressão internacional, vinda de organismos como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)?
E.L. – O governo está pouco se importando com o que diz a SIP. Instalou no país a ideia de que os jornalistas são todos mercenários a serviço de algum grande grupo de interesse. Ou seja, todos fazemos propaganda – alguns a favor do governo e outros contra. Destruiu a ideia de que existe imprensa independente e liberdade de expressão. (M.Y.)
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O déjà vu kirchnerista
Carlos Pagni (*)
Os especialistas da mente humana afirmam que 75% das pessoas já experimentaram alguma vez a sensação de ‘déjà vu’. É possível que uma porcentagem similar da sociedade argentina perceba que o dia de hoje, 23 de agosto de 2010, tem uma estranha familiaridade com o 9 de março de 2008.
No dia seguinte àquele 9 de março, os Kirchner emitiram a resolução 125 de retenções móveis e, ao fazer isso, desataram um grande conflito com a classe média urbana e rural. Esse processo determinou o destino político e eleitoral do kirchnerismo.
O ‘déjà vu’ é uma ilusão. Contudo, muitos atores do cenário político se preparam para assistir, a partir de hoje [terça, 24/8], uma longa batalha, que abrirá novas fissuras na Argentina e terá consequências para o futuro político.
O acontecimento mais relevante da agenda será a investida contra a empresa Papel Prensa. Dentre os acionistas da empresa estão os diários La Nación e Clarín.
Mas haverá outras ações. Em La Plata, Néstor Kirchner dará as chaves do Partido Justicialista da província de Buenos Aires a Hugo Moyano.
Muitos empresários, analistas e dirigentes políticos vêm explicando que, se Kirchner ganhar as eleições do ano que vem, se tornará mais parecido com Hugo Chávez.
Sem nos deter nas diferenças que o separam do venezuelano, a afirmação insinua que Kirchner faria um uso mais autoritário do poder.
Os profetas não calcularam que a metamorfose se anteciparia. Que Kirchner não esperaria ganhar as eleições para se parecer mais com Chávez, mas, ao contrário, apostaria na radicalização para ganhar as eleições.
Hoje, o governo emitirá uma mensagem clara: sua estratégia eleitoral terá orientação populista, intervencionista e antiliberal nos campos político e econômico. É algo que intriga os que esperavam gestos de moderação para recuperar eleitores dos setores médios. O signo da campanha será o enfrentamento.
Não é necessário esperar que o informe sobre a Papel Prensa para entender o rumo das coisas. Na sexta-feira (20/8), Néstor Kirchner participou do Fórum de São Paulo, em Buenos Aires. A assembleia, que reúne as principais forças de esquerda da América Latina, emitiu uma declaração recomendando que os Estados exerçam maior controle sobre a imprensa.
Não é de surpreender.
Grande parte da liderança regional entende que a iniciativa privada na imprensa é uma restrição à democracia e supõe que o governo deve modelar a comunicação.
Contudo, a escalada dos Kirchner contra os meios de comunicação não se inspira nessas ideias. Afinal, Néstor Kirchner tentou até 2008 um acordo com o Grupo Clarín que daria cobertura política a ele até 2015. Kirchner também não se preocupou que o cancelamento da licença de Fibertel possa beneficiar as telefônicas, nem que a perseguição à Cablevisíon possa enriquecer a Telecentro, do seu amigo Alberto Pierri.
Como se vê, não existe incompatibilidade entre o kirchnerismo e a propriedade privada. Porém, o pronunciamento contra Papel Prensa se insere num conflito com o empresariado. Talvez agora, Kirchner não veja o significado político de seu ataque à imprensa. Deus cega aqueles que Ele quer perder.
(*) Colunista do La Nación
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A arma do papel-jornal
Editorial de O Estado de S.Paulo, 26/8/2010
Do vasto arsenal de formas de arrocho da mídia ao alcance dos governos autocráticos e populistas na América Latina, a Argentina de Cristina Kirchner parece ter escolhido a variante de um antigo estratagema adotado nos seus tempos áureos pela ‘ditadura perfeita’, como o ensaísta mexicano Octavio Paz certa vez definiu o sistema político em seu país, com fachada democrática, resultados eleitorais forjados, corrupção endêmica e controle total do Estado pelo Partido Revolucionário Institucional, o notório PRI.
Para consolidar o seu poder, exercido de 1929 a 2000, o PRI teve o estalo de acabar com a liberdade de imprensa mediante um recurso mais sutil e menos truculento na aparência do que o empastelamento das redações e a prisão ou assassínio de jornalistas – algo entre a força bruta e a criação de conselhos tutelares da atividade informativa, como há quem queira adotar no Brasil. O governo decretou o monopólio da importação de papel-jornal, criando a famosa PIPSA – Produtora y Importadora de Papeles S.A. – e estabeleceu cotas do insumo para cada jornal, conforme o grau de sua docilidade aos ditadores-eleitos de turno.
Esse é o caminho por onde a presidente argentina acaba de enveredar, ao anunciar na terça-feira o projeto de lei que considerará de ‘interesse nacional’ a produção e o comércio de papel-jornal, com a instituição de um marco regulatório para as suas operações. Na realidade, a medida – concebida para o governo se apropriar do setor – tem um único alvo. Trata-se da empresa Papel Prensa, que fabrica 75% do insumo usado no país e abastece 170 diários. O controle acionário da companhia é compartilhado por dois jornais, Clarín (49%) e La Nación (22,49%), e pelo Estado argentino (27,46%). O restante pertence a pequenos investidores.
Dos dois jornais – originalmente havia um terceiro, La Razón, que quebrou –, ambos independentes e críticos do kirchnerismo, a fúria da Casa Rosada de há muito se abateu em primeiro lugar sobre o Clarín. A contar de setembro do ano passado, a intimidação contra o grupo que edita o periódico incluiu a razzia em sua sede e nas residências de seus diretores por 200 agentes da Receita Federal; a interrupção da distribuição do diário por um boicote de caminhoneiros orquestrado pelo sindicato de extração peronista e, como tal, alinhado com o governo; e o cancelamento da licença outorgada à empresa para vender serviços de internet.
A ofensiva liberticida não se limitou à proposta que se destina, numa etapa subsequente, à estatização da Papel Prensa. Há mais de um ano, aliás, que os dois jornais vêm denunciando o intento da presidente. Outra ponta da tenaz por ela empunhada foi o anúncio de que pedirá à Justiça uma investigação sobre a compra da empresa, nos anos 1970, sob a ditadura militar argentina, portanto. O objetivo alegado é caracterizar os ‘crimes contra a humanidade’ que os seus acionistas privados teriam cometido ao supostamente contar com a ajuda do regime para adquirir a Papel Prensa da família Graiver, que a controlava, por uma fração de seu valor de mercado.
A própria Cristina Kirchner apresentou, numa audiência televisada, o que seria o fundamento da acusação: um relatório de 400 páginas, cuja fidedignidade pode ser julgada pela afirmação de que o clã – que passou a ser chefiado pela matriarca Lidia Papaleo, depois de enviuvar do poderoso banqueiro David Graiver – foi praticamente obrigado pelos militares, até com a tortura de alguns de seus integrantes, a se desfazer da empresa. A alegação peca por anacronismo. O negócio se consumou em novembro de 1976. A tortura dos membros da família, acusada de gerir as finanças da organização de luta armada Montoneros, ocorreu 6 meses depois.
O historiador argentino Marcelo Larraquy chama a atenção para um detalhe do caso: desde a redemocratização do país, há 27 anos, é a primeira vez que se levantam dúvidas sobre a legitimidade da transação. Segundo o Clarín e o La Nación, Lidia Papaleo foi cooptada pelo governo para ‘inventar uma história’ a fim de anular a compra da papelera. Desse modo, o controle efetivo do suprimento de papel de imprensa na Argentina ficaria com o casal Cristina e Nestor Kirchner. Ele pretende voltar à Casa Rosada em 2011.