O bom jornalismo não precisa ter a periodicidade diária. Nem mesmo semanal. Pode ser exercido num quinzenário (caso do New York Review of Books) ou mesmo numa publicação quadrimestral.
Caso do afiadíssimo e suave Serrote, do Instituto Moreira Salles, já na sua terceira edição, magnífico mostruário de um jornalismo de referência, permanente, não descartável. Fascinante da primeira à ultima página. Exibição de esmero não-maneirista, como ‘modelo de negócio’: a qualidade transformada em vantagem competitiva.
Poderia ser designado como ‘novíssimo jornalismo’ pelos novidadeiros e fabricantes de fogos de artifício. Na realidade é o venerando feuilleton que ainda persiste em alguns veículos europeus, especialmente em idioma alemão, convertido no paradigma do jornalismo que sobreviverá à onda de grunhidos do twitter e à fragmentação da vida através desta mistificação chamada ‘tempo real’.
Quando Montaigne criou os seus famosos ensaios no século 16 não poderia imaginar que este gênero que considerava menor, algo como uma ruminação pessoal, devidamente energizada pela pertinência poderia converter-se na salvação de algo que ainda não existia: a imprensa.
Anos-luz
A reportagem de abertura de Serrote, assinada pela socióloga e pesquisadora Ângela Alonso, é uma primorosa reconstituição da Proclamação da República – cujo 120º aniversário foi totalmente esquecido por nosso trepidante jornalismo diário (o único colunista a lembrar a efeméride foi João Ubaldo Ribeiro).
Registro dos registros, caprichada colagem de recortes dos jornais da época, enriquecida por uma valente pesquisa em fontes secundárias. Um painel vivo, palpitante e, para este observador, melancólico de um episódio que deixou profundas marcas em nosso processo político.
Injusto ignorar as demais peças que compõem este Serrote, mas o segundo ensaio, ‘O fim da canção’, merece dois louvores: pela qualidade intrínseca e pela escolha do autor. A arte de editar pressupõe a capacidade de produzir o inesperado. Seria corriqueiro, banal, convidar o jornalista Fernando de Barros e Silva, um dos textos mais contundentes da Folha de S. Paulo, para escrever um perfil ou episódio político. Mas é insólito provocá-lo para refletir sobre o fim da canção, do lied, soterrado pela percussão da música comercial contemporânea.
O leitor precisa ser surpreendido constantemente. A atual crise da imprensa resulta precisamente de uma perigosa opção pelos estereótipos e pela previsibilidade. Os jornalistas-porteiros das redações ligam o piloto-automático e seguem em frente rumo à saturação. Sem tempo ou saco para surpreender o leitor.
Serrote faz apenas isso: sacode. Oferece um grande prazer e, ao mesmo tempo, desconforto ao revelar em surdina quão distante ficou a indústria jornalística do jornalismo.