Na quinta-feira (17/1), uma foto cobriu a maior parte da metade inferior da capa de O Globo. Feita por Gustavo Miranda, ela mostra o presidente Lula no instante em que cumprimenta, no Palácio do Planalto, o senador Edison Lobão (PMDB-MA), confirmado como o novo ministro das Minas e Energia. Ao fundo, à direita, um Cristo crucificado de cabeça baixa pende na parede em lambri de madeira. À esquerda, Lobão tem o semblante sério, circunspecto, como que cioso da responsabilidade. O presidente da República guarda uma fisionomia também séria, mas sua seriedade é menos cívica e mais taciturna, funérea, acabrunhada, como se desse os pêsames ao circunstante. Lula tem os olhos baixos, como Jesus Cristo, logo atrás. Seus, a bem da verdade, estão pregados no chão. Governos habitualmente comemoram a chegada de novos ministros, anunciados com aquele ufanismo típico de ‘agora, sim, a coisa vai’. Dessa vez, a cena transmitiu desaponto no rosto presidencial. A foto de Gustavo Miranda é o retrato da notícia, sem pôr nem tirar. | Clique aqui para ampliar a imagem |
Sem cair na lengalenga segundo a qual uma imagem vale mais que mil palavras – o que não é verdade, nem como força de expressão, pois a imagem, no jornalismo, enuncia parte do discurso, complementa-o, mas não é capaz de, sozinha, fazer o discurso, ou seja, ela ‘fala’ ao lado das palavras, sem, contudo, substituí-las, tanto que precisa repousar sobre um alicerce de palavras a que chamamos legenda –,
podemos dizer que a fotografia, nessa capa do Globo, gritou em sintonia com a manchete, que dizia: ‘Lobão vira ministro apesar de denúncias e crise energética’ (as denúncias diziam respeito ao filho do senador, seu suplente, e não vêm ao caso). Diante da foto pendurada na manchete, o leitor se dá conta de que o país tem um novo ministro e de que o presidente da República parece que teve de engoli-lo a contragosto. ‘Vai tu mesmo’. No dia seguinte, no mesmo jornal, um dos mais sagazes cronistas da política brasileira, Chico Caruso, que escreve com desenhos em lugar de frases, comentou a fotografia. Ele a recortou, eliminou o fundo – Caruso limou Jesus Cristo – e ali perpetrou o que os artistas chamariam de ‘intervenção’.Sobre o vulto cabisbaixo do chefe de Estado e de Governo, rabiscou um capuz vermelhão, fantasiando Lula de Chapeuzinho Vermelho. Na legenda, um travessão abre a pergunta: ‘Mas por que essa tristeza tããão grande?’ Dado o contexto, deduz-se que é o Lobo quem dirige a pergunta à Chapeuzinho. Que cala. | Clique aqui para ampliar a imagem |
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E então? Por que tanta tristeza?
A fotografia, voltemos a ela, parece ter flagrado um descuido, um lapso do presidente, num momento que em que este, talvez distraído, deixou transparecer o seu verdadeiro estado de espírito. O leitor tem a sensação de que Gustavo Miranda fotografou em ‘raio-x’, quer dizer, foi capaz de enxergar além das aparências convencionais. A imagem que capturou tem assim essa aura de ter descortinado o que não era para ser declarado.
O instituto da fotografia desfruta de uma autoridade imbatível no jornalismo. As recentes possibilidades das trucagens digitais, de manipulação eletrônica, não lhe retiraram a força. Imagens fotográficas são recebidas pela cultura corrente como um índice indiscutível da realidade. Dizem até que, diante de uma boa câmera, manuseada por um profissional atento, ninguém consegue fingir.
De outro lado, não se pode recusar a hipótese de que Lula, com seu talento nato e, depois, finamente trabalhado, de comunicador, não tivesse consciência de que sua expressão facial, se publicada na imprensa, funcionaria como nota oficial à nação. Assim como os editores de jornais recorrem às fotos para dar prolongamento ao sentido das palavras – as fotos muitas vezes informam aquilo que, não raro, os personagens que nelas aparecem não têm como ou por que proclamar de voz própria –, os políticos também recorrem à presença dos fotógrafos para dizer gestualmente o que preferem não dizer de voz própria. Um exemplo: conseguem falar sem falar quando, sabendo-se observados pelas objetivas, adotam um jeito específico de olhar, ou não olhar, para o interlocutor.
A imagem fotográfica é assim um ponto de encontro entre o dever de apurar os fatos, que cabe ao jornalista, e a vontade de aparecer desse ou daquele modo, que move o político. De forma privilegiada, é por meio dela que a cena teatral da política vai a público.
Quadro a quadro
Portanto, a pergunta ‘Por que tanta tristeza?’ adquire um pouco mais de complexidade. A resposta obrigatoriamente transita entre duas alternativas. Se a tristeza é sincera, ela se deve ao inconformismo silenciado de quem teve de se dobrar diante de algum constrangimento. Se a tristeza é calculada, ela reflete a condição de quem gostaria que pensássemos que está constrangido. O mais interessante é que uma alternativa não exclui a outra: ambas podem muito bem se mesclar. O político seria aquele, então, que finge que é constrangimento o constrangimento que deveras sente – e o fotógrafo seria aquele que flagra como espontânea uma reação ensaiada, embora, em se tratando de política, sempre exista uma dose de imprevisibilidade no cálculo e uma forte presença de cálculo na improvisação e até mesmo no ato falho.
Frente a tantas sutilezas e ambigüidades, a interpretação, digamos, ‘cartunística’ da fotografia no traço de Caruso tem o dom de reduzi-la a um jogo estanque entre bem e mal. Quando posto no lugar da pobre e indefesa Chapeuzinho Vermelho, assediada por um Lobo Mau que, se necessário, saberá se fazer passar por vovozinha, o presidente da República é retratado como uma vítima tristonha de algo que sepassou sob suas barbas sem que ele pudesse impedir. O leitor, sem se dar conta, vai se compadecer: pobre presidente. Desse modo, a charge tende a fixar uma moral da história, reduz as possibilidades de sentido da fotografia. Ocorre que, na vida prática – e sobretudo na vida pragmática –, a moral da história, bem como a própria história, tem esse incômodo atributo de se mover, de ir para um lado, para outro, de deslocar-se mesmo quando posta em imagem congelada. Não por acaso, na capa de O Globo do sábado (19/1), fez-se necessária uma nova reinterpretação da fábula infantil mais perversa da semana que passou. Aí, o mesmo Chico Caruso arranjou um outro ator para fazer o papel de Chapeuzinho Vermelho ou, melhor, arranjou uma atriz, como convém. Vestiu de Chapeuzinho a ministra Dilma Rousseff. O seu desenho criou uma cena estapafúrdia e, por isso, cômica. Irrompendo por detrás de uma árvore, Lobão prega um baita susto na Chapeuzinho. Esta, com as feições da ministra, mas paramentada com um vestidinho ultra-infantil, dá um pulo em recuo, em marcha-ré. Na legenda, surge outra pergunta: ‘Por que esse apetite tão grande?’ | Clique aqui para ampliar a imagem |
Não há como negar: ela fica melhor que o presidente na condição de vítima, mas ainda é o governo sendo vítima. Quanto à resposta à pergunta que ela faz, esta dependerá do desempenho de Lobão à frente de sua nova pasta. Veremos que apetite é esse a que se refere a Chapeuzinho-ministra. Por ora, não deixa de ser interessante que, na moral da história, que se move e se fixa como num filme quadro a quadro, o governo consiga figurar como vítima de um ato que ele mesmo praticou.
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Começo aqui uma nova coluna no Observatório da Imprensa: ‘A imagem fixa (que, no entanto, se move)’. Meu propósito é prestar atenção, de modo sistemático, regular, em um dos aspectos mais ricos do jornalismo impresso: o visual. De saída, admito que há, sim, um gosto pessoal na escolha do objeto: nada como ler jornal pelas figuras. A cada duas semanas, postarei um artigo. Comentarei imagens – fotos, charges, design, tipos, diagramação – e, por meio delas, quero ver se consigo tocar nos fios que fixam o sentido.
Para inaugurar a coluna, o caso do papel do Chapeuzinho Vermelho veio como que de encomenda. Não vejo, há tempos, uma seqüência tão eloqüente para demonstrar como, pela imagem no jornal, o sentido, o valor e a moral primeiro se fixam e depois vão mudando de lugar.
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007