Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A reconstrução do jornalismo

(Foto: Lukas Blazek/Unsplash)

O jornalismo tem uma nova e transcendental função no mundo digitalizado, mas para ocupar este espaço, a atividade necessita ser recriada noutras bases. Não se trata de acabar com todo o passado do jornalismo, porque isto é impossível, mas de entender que a realidade mudou, o que nos obriga a refazer rotinas, normas e valores que orientam o exercício da atividade jornalística.

A recriação do jornalismo tornou-se necessária porque surgiram novas tecnologias de informação e comunicação que alteraram profundamente a forma pela qual a produção de notícias foi desenvolvida ao longo dos últimos séculos.

O jornalismo, como atividade profissional, surgiu depois da descoberta da impressão por meio de tipos móveis, por Johannes Gutemberg, no século XV. Nos 500 anos seguintes, a prática do jornalismo foi condicionada por três fatores econômicos básicos: escassez de informações; alto custo dos equipamentos (gráficas, distribuição e equipamentos audiovisuais) e a comercialização das notícias. Os três fatores estão interligados: a escassez de informações deu valor monetário ao produto jornalístico (a notícia) cuja comercialização e distribuição ao público exige altos investimentos financeiros com a consequente elitização e concentração dos negócios envolvendo informação jornalística.

Este modelo tornou-se uma verdadeira mina de ouro nos anos 80 e 90 do século XX, com o desenvolvimento da comunicação em massa, mas sofreu um golpe duríssimo já no final dos 90 com a disseminação exponencial do processo de digitalização nos meios de comunicação e nas demais atividades econômicas.

Crise sistêmica

A digitalização abalou as estruturas que serviam de base ao exercício do jornalismo tradicional porque atingiu em cheio os três fatores econômicos mencionados no parágrafo anterior: a internet e a computação criaram uma avalanche informativa de proporções cósmicas que reduziu o preço da notícia a quase zero por conta da oferta abundante, provocando uma crise sistêmica no modelo de negócios da imprensa. Além disso, a digitalização reduziu enormemente o custo dos equipamentos (hardware) e programas (software) permitindo que pessoas comuns competissem com os jornalistas na publicação e distribuição de notícias em texto, áudio e vídeo, o que acabou com a posição monopolística da imprensa na comunicação pública.

Toda a estrutura sobre a qual o jornalismo se desenvolveu na era analógico/mecânica, foi profundamente abalada. Parte dela será mantida porque várias publicações impressas sobreviverão na era digital, com alguns jornais, revistas, livros e newsletters impressos. Há público e características específicas de conteúdo que viabilizam economicamente a permanência de nichos analógicos num ambiente informativo majoritariamente digitalizado.

Mas o jornalismo como função pública vinculada à disseminação de notícias na forma de dados, fatos e eventos inéditos, relevantes, pertinentes e confiáveis está sendo empurrado para um novo conjunto de rotinas, regras e valores, ditados pela dinâmica social, econômica, política e cultural da nova realidade digital.

O fato de o público ter se tornado proativo na produção e circulação de notícias obriga os jornalistas a sair das redações e buscar um contato direto com o público. O senso comum na profissão era o de que os jornalistas sabiam o que era bom para as pessoas em matéria de informação. Mas hoje esta ideia está sendo duramente questionada pelo envolvimento crescente das pessoas no debate público por meio de postagens e comentários em redes sociais virtuais como Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.

A teoria da prática

A necessidade de interagir com o público está obrigando os profissionais a reduzir a importância dada às técnicas de redação, edição e publicação de notícias, para privilegiar o relacionamento com as pessoas. É uma preocupação nova que não tem ainda rotinas, normas e valores próprios. Muitos profissionais partiram para tentativas tipo erro ou acerto para descobrir como obter a colaboração e confiança do público. Já os pesquisadores acadêmicos na área da comunicação recorreram aos trabalhos de teóricos como Pierre Bourdieu sobre a teoria da prática, como paradigma.

Muito sumariamente, a teoria da prática diz que ao se defrontar com um fenômeno ou processo desconhecido, a observação da realidade concreta (usando técnicas inspiradas na antropologia e etnografia) é o procedimento mais adequado para codificar, categorizar e criar hipóteses capazes de encontrar explicações e soluções para aquilo que desconhecemos. Usando a teoria da prática, pesquisadores do jornalismo constataram que a notícia perdeu valor como commodity mas ganhou importância como item obrigatório da produção de conhecimento socialmente relevante.

Entramos aqui noutra mudança fundamental no novo contexto em que o jornalismo é praticado. Como fator de produção de conhecimento, o jornalismo deixa de estar atrelado a um processo industrial porque, como vimos, não há mais base econômica material para sustentar a lucratividade nos moldes em que a atividade vinha sendo exercida até agora. O que importa agora é como o jornalismo pode se incorporar ao processo de recombinação de dados, fatos e eventos inéditos, relevantes, pertinentes e confiáveis que dá origem a novos conhecimentos. A geração de novos conhecimentos é essencial ao processo de inovação contínua que alimenta a competição entre produtos digitais num mercado de consumo globalizado.

O jornalismo na guerra pela atenção pública

Para que a produção de conhecimentos aconteça é necessário que os dados, fatos e eventos atraiam a atenção dos indivíduos que participam da recombinação ou remixagem. Nesta guerra pela atenção, o jornalismo parte de uma posição privilegiada porque esta tem sido uma de suas principais especialidades ao longo de sua história, ao formatar e contextualizar dados, fatos e eventos para que eles possam atrair a atenção do público, viabilizando a conversão de índices de audiência em publicidade paga. Por isto, o jornalismo ganhou uma enorme importância na chamada sociedade do conhecimento, um dos jargões mais usados pelos especialistas para qualificar o meio social em que estamos começando a viver.

Novas preocupações e funções

O fenômeno das redes sociais interativas marginalizou os jornalistas na cobertura das notícias de atualidade imediata, mas lhes abriu novos campos, tão ou mais importantes, como por exemplo:

a) a checagem de fatos e dados,
b) a curadoria de informações,
c) o treinamento dos chamados jornalistas amadores no manejo da informação,
d) a organização e análise de dados para produção de notícias,
e) a interação com o público para a produção colaborativa de noticiário jornalístico,
f) a atividade investigativa torna-se prioritária.

As novas qualificações exigidas pelo exercício do jornalismo em ambiente digital alteram uma série de rotinas, comportamentos, normas e valores da era analógica do jornalismo, como é o caso da:

a) busca pelo “furo” noticioso,
b) presença crescente das redes sociais na produção das chamadas hard news (notícias de atualidade imediata),
c) necessidade de rever conceitos como verdade, objetividade e imparcialidade,
d) nova definição de direitos autorais,
e) novas modalidades de certificação de credibilidade e confiabilidade,
f) prioridade do enfoque global sobre o local no noticiário.

Estas são algumas das alternativas abertas ao exercício do jornalismo no contexto digital que ainda é um espaço tecnológico, econômico, político, social e cognitivo em exploração. A cada nova descoberta surgem mais incógnitas e desafios, o que leva o jornalismo, inevitavelmente, a um processo exploratório, compulsoriamente baseado na observação prática da realidade sem ideias pré-concebidas.

Artigo publicado originalmente na plataforma Medium.

***

Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.