A explicação da senadora Ideli Salvatti (PT) sobre o alto volume de recursos movimentado por suas contas entre janeiro de 2004 e setembro de 2005 não se sustenta, segundo o Correio Braziliense de segunda-feira (26/6). A senadora disse que havia tomado empréstimos bancários no valor de R$ 250 mil e vendido dois carros.
Nas contas dos repórteres Ana D´Angelo e Lúcio Vaz, seus rendimentos normais, mais os empréstimos e o dinheiro da venda dos carros, podem ser arredondados para R$ 1 milhão. Ainda faltaria explicar o outro milhão. Os repórteres tiveram o cuidado de submeter os dados ao crivo de dois auditores fiscais, que afirmaram haver indícios de sonegação fiscal ou de depósitos de origem não declarada. Nesses casos, quando a Receita Federal observa a distorção, deve abrir procedimento fiscal para que o contribuinte apresente seus extratos para esclarecer a origem do dinheiro. ‘É assim que age o Fisco com os mortais contribuintes’, afirma o texto.
Os repórteres do Correio estão aparentemente fazendo uma boa apuração, somando os dados e consultando especialistas para saber o que realmente acontece. Mas, até aí, foi o Correio (e seu co-irmão da rede Diários Associados, o Estado de Minas) quem deu a partida na pauta. Ele é o ‘dono da bola’. O banco de dados Deu no Jornal, da Transparência Brasil, mostra que outros jornais entraram no assunto depois da publicação da primeira matéria, mas o único que teve apuração original dessas informações foi o Correio Braziliense.
Personagens locais
Cabem aqui algumas observações sobre a lógica da repercussão de assuntos jornalísticos, especialmente em casos de possível corrupção. Já retorno ao caso Ideli.
A maior parte das notícias sobre corrupção tem início em jornais de referência nacional – Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo, e logo depois o Correio Braziliense. Depois de sair especialmente nos primeiros três, as notícias são redistribuídas por suas agências e pipocam em jornais de todo o país. Quem atende mais jornais é a Agência Estado. Esses jornais regionais basicamente repetem o texto do jornal original, em versão resumida (várias vezes) ou talvez numa síntese com textos de outras agências (de vez em quando) e alguma apuração própria (raramente). Às vezes se faz alguma distorção no texto, como no caso da nota ‘Wink-Wink’ , de 6/6 (clique aqui e desça a tela para lê-la).
Os três maiores jornais de referência concorrem entre si e geralmente um não repercute os ‘ furos’ que o outro dá. Por exemplo: O Globo publicou a história sobre a farra das verbas de gabinete com notas de combustível; Estado e Folha solenemente desconheceram o caso, embora tenha repercutido no Brasil todo (inclusive no Correio Braziliense, no mesmo dia). Eles apenas reconhecem um ao outro quando o caso ganha relevância nacional. O caseiro Francenildo deu uma entrevista ao Estadão em março, mas os concorrentes só foram dar bola ao caso quando o sigilo do caseiro foi quebrado.
Quando os jornais regionais acrescentam repercussão própria aos casos, dificilmente acrescentam apuração própria. Apuração, aqui, no sentido de obter e encaixar as peças do quebra-cabeças que é o caso. O que interessa, afinal, é compreender o que houve, e não apenas manter o assunto em voga. No máximo, o que eles fazem geralmente é colher opiniões de personagens locais. É um começo, mas não ajuda a fechar o quebra-cabeças.
E no caso de Ideli Salvatti, como foi a dinâmica?
Juntar pecinhas
Em agosto do ano passado, o Diário Catarinense, do estado de origem da senadora, publicou uma primeira reportagem sobre o fato de o procurador Celso Três estar investigando a origem do dinheiro que pagou seus outdoors. Onze dias depois, a Folha de S.Paulo mexeu no assunto. Nenhuma revelação nova sobre o caso até a semana passada, quando o Correio Braziliense publicou a primeira reportagem baseada nos dados bancários da senadora.
No dia seguinte, com a forte reação da senadora na tribuna, acusando o jornal de persegui-la, Folha e Estadão, além dos catarinenses A Notícia e Diário Catarinense, repercutiram o caso sem acrescentar muito. Basicamente, mencionam os dados do Correio Braziliense e registram as declarações da senadora no plenário. Todos na linha do ‘ Ideli se explica’ . O Diário Catarinense ainda acrescenta que o caso foi enviado para o procurador-geral da República. Já o jornal que iniciou o caso, o Correio Braziliense crava: ‘Ideli não explica movimentação’.
No terceiro dia do caso, quinta-feira (22/6), os jornais regionais seguem na linha do que é anunciado: ‘Senado pode investigar Ideli’, ‘Procurador quer devassa em contas de Ideli’, ‘Ideli cobra ação judicial de procurador’. O jornal que originou o caso crava: Ideli teve a oportunidade de se defender no Ministério Público, mas não quis.
O jornalista Marcelo Beraba, ombudsman da Folha e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, tem uma análise interessante sobre os fundamentos da apuração jornalística. Estes são as habilidades que um jornalista pode desenvolver para descobrir coisas como repórter. Esses fundamentos são basicamente cinco: entrevista, observação do ambiente, pesquisa, busca de documentação e checagem. Na avaliação do ombudsman, o mais utilizado pela maioria dos repórteres, na maior parte do tempo, é a entrevista. E mal usado: segundo ele, muitas vezes o repórter deixa de lado a pesquisa e apura as matérias simplesmente botando o microfone na boca de alguém e perguntando o que essa pessoa acha do assunto do dia.
Cláudio Weber Abramo, diretor da Transparência Brasil, jornalista por vários anos e hoje um experiente entrevistado, observa: uma fonte esperta coloca o que quiser no jornal, porque a maioria dos repórteres esquece de fazer a segunda pergunta – geralmente o ‘como assim?’. Chegam para as entrevistas preocupados mais em registrar o que o entrevistado diz do que em compreender a questão, em juntar as pecinhas do quebra-cabeças.
É daí que surge a praga do declaratório, que vem sendo analisada, a conta-gotas, desde o início do blog do projeto Deu no Jornal.
O papel do editor
Obviamente, a explicação disso não é simples. É lógico que há muitos repórteres muito bons no país, ou não haveria excelentes reportagens (está aí a seção ‘O Melhor do Jornalismo’, do Deu no Jornal, para prová-lo). Não dá para cravar apenas que os repórteres são mal formados ou desinteressados. Não é esse o propósito do Deu no Jornal. A idéia é tentar entender por que a qualidade não é melhor. Um dos fatores é certamente o enxugamento das redações, que sobrecarrega a maioria dos repórteres dos jornais de referência e dos regionais. Não dá para cobrir bem todos os assuntos, todos os dias, com equipes pequenas.
No caso Watergate, que levantou irregularidades do governo Nixon entre 1972 e 1974, os personagens que ficaram mais famosos foram os repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward, do Washington Post, e a misteriosa fonte ‘Garganta Profunda’ , que no ano passado revelou ser o ex-número dois do FBI, Mark Felt. Mas a figura-chave para o sucesso da cobertura deles não apareceu no filme: o editor Barry Sussmann, responsável por coordenar exclusivamente a cobertura do caso Watergate.
Sussmann, que escreveu um livro sobre o caso no final dos anos 1970, é mencionado no livro Todos os Homens do Presidente como um jornalista de memória excepcional, que diariamente se reunia com os dois repórteres para saber o que eles tinham descoberto. Muitas vezes, ele correlacionava a informação do dia a algo que tinha sido apurado muito antes, garantindo que as peças do quebra-cabeças se encaixassem.
Não adianta apenas creditar coberturas ruins na conta de repórteres possivelmente despreparados. É papel do editor exigir e checar a coerência do que sai. O papel do editor é uma peça fundamental para compreender como se espalha a praga do declaratório.
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Jornalista, coordenador do projeto Deu no Jornal, da Transparência Brasil