A matéria é relativamente antiga, mas não pode ficar sem um breve registro. É emblemática no que toca ao tratamento que os meios de comunicação, em especial a televisão, dispensam aos fatos históricos. A tênue linha que separava informação de entretenimento parece ter desaparecido. O que surgiu é algo novo que mescla jornalismo, publicidade e folhetim. Em estado bruto, o espetáculo toma o lugar da história e suas contradições. Formatado para consumo ligeiro, o cotidiano de uma região conflagrada é vendido como souvenir de uma viajante deslumbrada.
Vamos ao instantâneo do que a TV Globo parece considerar a versão mais adequada de new journalism. Personagem central desse equívoco editorial é a jornalista Ana Paula Padrão, editora e apresentadora do telejornal supostamente mais analítico da emissora – o Jornal da Globo –, que vai ao ar por volta de meia-noite.
Em uma série dedicada ao Afeganistão, país devastado pela guerra e ainda tomado por lutas entre facções tribais, foi apresentada , na edição de 27/5, uma reportagem sobre a vida dos afegãos no pós-guerra. Observemos que, desde a chamada (‘A noite é uma criança’), o relato busca exorcizar qualquer vestígio de concretude do povo. Esqueçamos a ainda ativa milícia talibã, os atentados diários e as famílias dos que apodrecem, à margem de qualquer legislação, nos cárceres de Guantánamo. O que sobra? Uma obra jornalística ou memórias de uma turista acidental? Não estaria escrevendo este texto se considerasse que a matéria foi uma escorregadela de profissional inexperiente. O que preocupa é a constatação de que isso pode ser indício de uma tendência editorial que se afigura, perigosamente, como irreversível.
Sinais eloqüentes
Na última quinta-feira de maio, o telespectador brasileiro recebia as informações que classificaremos como inusitadas. Com voz pausada e um ligeiro sorriso, a apresentadora afirmava, após dias de andanças pela capital afegã que…
‘…Cabul agora é uma explosão de alegria. Pouco importa se eles dançam em meio a soldados armados, se as décadas de guerra levaram tudo que eles tinham. Se amanhã tudo mudar, pouco importa’.
Ou há algo de muito estranho no texto da jornalista ou ocorreu, após décadas de confrontos, um surto de epicurismo na região. Mas a narrativa da editora global não pára por aí. A versão rave continuou em marcha batida:
‘Tudo o que não podia, agora pode. Fotos de mulheres, maquiadas, sorridentes. A vaidade é permitida. A música também. Os sons da guerra, única melodia aceita pelos talibãs, foram substituídos pelas canções indianas’.
Enfim a redenção da mulher afegã. Livres do jugo cruento da versão islâmica dos talibãs, as moças agora podem ser vaidosas, se deixar fotografar, dançar e, atentem bem, até se maquiar. Para Ana Paula Padrão, as conquistas femininas do pós-guerra limitam-se ao âmbito do flash e da cosmetologia. Outros veículos, no entanto, dão um quadro bem diferente do descrito no Jornal da Globo. E neles estão presentes estupros e destituição plena de direitos.Isso, Ana Paula não viu. Serenamente, continua a descrever:
‘E a cópia – malfeita – da comida rápida ocidental para eles é banquete, mas é quando a noite cai que Cabul pode mais. Daquela cidade às escuras, oprimida pelo toque de recolher, sobrou pouco, como já veremos. Burger Pizza. Barbecue. A rua dos restaurantes é o ponto de encontro noturno, que agora pode. Churrasquinho é o prato da hora e o freguês pode conferir a qualidade da carne ali mesmo. Bebida alcoólica, bem, poder não pode, mas ela também está lá, acredite, basta pedir’.
Sem dúvida, para Ana Paula, uma ligeira tolerância com a embriaguez é sinal de ocidentalização e liberalização nos costumes. O saldo da guerra parece, enfim, positivo para uma população duramente bombardeada por caças americanos. Burger Pizza e points. Sinais indiscutíveis de integração cultural. O que mais teria a nos informar o noticiário global? Vejamos:
‘É ali que as centenas de estrangeiros em missão na cidade vêm buscar o jantar e quem não pode vir, pede entrega em casa. Mas, hoje, o movimento de carros indica que o agito está acontecendo mesmo em outro canto. Pergunta daqui e dali, encontramos o endereço e ingressos para a comemoração. Durante muito tempo os afegãos não puderam fazer festa, o que não significa que eles não saibam fazer festa. Esta noite nós somos os convidados especiais de festa típica do Afeganistão. Trata-se do aniversário da vitória dos Mujahedin, os guerreiros afegãos que derrotaram os soviéticos depois de dez anos de invasão’.
Cinco mortos
Não é sensacional? Está acontecendo um ‘agito’ dos Mujahedin. E a equipe de jornalismo participa do embalo. O telespectador , justamente, deve estar se perguntando se as músicas do Nirvana foram incorporadas às festas típicas do lugar. Concluindo , Padrão pergunta:
‘A banda tira a poeira dos instrumentos escondidos durante tanto tempo e filmadoras, agora, fazem o maior sucesso. Mas sucesso mesmo é o nosso amigo aí, doido pra mostrar ao mundo um pouco do ritmo afegão.Você acha esquisito? Mas festa aqui é assim mesmo. Uma rave radical e lúcida. A vida desse povo já é puro rock and roll‘.
Agora, não resta dúvida: se a vida dos afegãos é ‘puro rock and roll‘, descobrimos, finalmente, o que vem a ser George W. Bush. Uma mistura inédita de presidente e DJ.
Realmente, é tudo muito rave.
Pena que seis dias depois, em 3/6, a organização humanitária Médicos sem Fronteiras (MSF) anunciou a suspensão de suas atividades no Afeganistão. Cinco funcionários foram mortos em uma estrada no noroeste do país. Segundo o chefe da polícia local, Amir Sha Naybezada, o ataque foi realizado por talibãs e membros da al-Qaeda.
Deve estar equivocado. A se acreditar na versão do jornalismo global, o lamentável episódio é obra de um grupo heavy metal afegão.
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Professor universitário