Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A responsabilidade da imprensa

Uma fotomontagem em que a presidenta Dilma Rousseff aparece de pernas abertas, na boca de um tanque de automóvel, jogou mais combustível na fogueira de ódio e insensatez que se espalha por todo o país. A imagem é chocante e não ofende apenas a mais alta autoridade do país, mas todos os cidadãos e, principalmente, as mulheres, no Brasil e no mundo. A metáfora visual é a de uma penetração sexual, de um estupro.

Essa afronta não é um caso isolado. Pelo contrário, a passividade das principais autoridades do país tem autorizado uma série de crimes contra a democracia e contra a dignidade humana. Por trás de gestos mais raivosos, tresloucados e imbecilizados, foi tecida uma competente estratégia de propagar o ódio e promover a agitação social necessária à aplicação de um golpe de Estado para o qual só parece faltar o acerto de data. Mais que um golpe contra o resultado das urnas, será contra boa parte dos avanços civilizatórios duramente conquistados desde o fim da ditadura de 64. Some-se a isso uma intolerância religiosa que era até então desconhecida no país e que hoje grita seus slogans medievais muito além dos púlpitos, nos parlamentos e nas emissoras de rádio e TV.

Depois da quarta derrota eleitoral à presidência, os setores mais conservadores da sociedade brasileira perceberam que, pela via democrática, suas chances de ascender ao Palácio do Planalto tornaram-se remotas. Se não foi possível convencer pelo voto, importantes setores da mídia, do parlamento e do judiciário desenharam nova estratégia. Os principais veículos de comunicação passaram a desenvolver, diariamente, uma estratégia que consiste em omitir o que há de positivo no país e exagerar na análise pessimista. Mais que isso: o que poderia ser uma excelente oportunidade para desnudar como funciona o esquema de financiamento de campanhas políticas e o uso da máquina pública e de empresas estatais para troca de favores – em todas as esferas, federais, estaduais e municipais –, resultou em uma justiça caolha, uma mídia manipuladora e um Congresso Nacional retrógrado, centrados no objetivo de criminalizar um único partido, um único governo e, especialmente, Lula e Dilma.

Uma ameaça à  dignidade humana

O festival de imagens agressivas vem sendo produzido há muito tempo. Um dos casos mais recentes ocorreu na coluna do jornalista Ricardo Noblat, no jornal O Globo (29/6/2015), que pôs a cabeça degolada da presidenta Dilma em uma bandeja. O título acompanha o “primor” da ilustração: “Em jogo, a cabeça de Dilma”.

O jornal Correio Braziliense publicou no dia 8/9/2014, na capa, uma foto de Beto Barata em que uma metralhadora é apontada contra a face da presidenta, durante desfile militar de 7 de setembro. O mesmo truque de angulação – usado à exaustão e, portanto, já sem nenhuma originalidade – deu a Wilton Júnior (O Estado de S. Paulo) o Prêmio Esso de Fotografia de 2012. Ilusoriamente, uma espada trespassa o corpo da presidenta, durante uma cerimônia militar em Agulhas Negras, em Resende (RJ).

Se alguns dos principais veículos de comunicação, por repetidas vezes, simulam que a presidenta deve ser executada – e aí não há nenhuma possibilidade de inocência nessa metáfora de “morte à presidenta” –, por que deveríamos estranhar que essa convocação à “malhação de Judas” não encontraria campo fértil em meio a milhares de internautas ávidos por exibir toda a sanha reacionária e a falta de escrúpulos no debate político? Por que nos surpreenderíamos com tantos cartazes pedindo a volta da ditadura em passeatas que a mídia louva como a fina flor da democracia? Por que nos espantaríamos com as bancadas evangélicas, da bala e do latifúndio a vociferar contra os direitos humanos?

Houve quem tenha se recusado a reproduzir, nas redes sociais, a imagem sórdida de uma mulher, de pernas abertas na boca do tanque de combustível de um automóvel. Compreendo e louvo a tentativa de evitar a banalização da cena. Me inclino, no entanto, na direção contrária, por uma razão: não podemos deixar de ver, compreender e estar alerta contra o que ameaça destruir a dignidade humana. Ver para não se iludir sobre o crescimento da barbárie. Ver para denunciar o ódio que cega tantas pessoas que se consideram humanas, amorosas.

Duas caras, dois pesos e duas medidas

Estranhamente, começaram a surgir, também na internet, os indignados contra quem se indignou. Houve muitas críticas aos que optaram por mostrar as imagens anexas aos textos de protesto a esse ato de misoginia. Boa parte dos críticos não atacou os autores da fotomontagem que escandalizou o país. Preferiu desviar o foco do debate, para tentar atingir apenas aqueles que se disseram profundamente impactados pelo ato vil.

A imagem é grosseira e não cabe banalizá-la com reproduções gratuitas e comentários machistas. Mas é preciso mostrá-la a quem ainda não viu, para que percebam a extensão do que acontece hoje no Brasil e acordem a tempo de evitar o pior. Há uma profusão de atentados à democracia e à dignidade humana. E por serem desferidos contra o atual governo, contra Lula, Dilma e o PT, não faltam incentivadores desse ódio que explica nossas raízes racistas, conservadoras e elitistas.

Há coisas que precisam ser vistas. Não há como esconder as atrocidades que o ser humano já foi capaz de perpetrar, ao longo de milênios. Algumas imagens têm o poder de alertar contra a fera humana, sempre numa tênue fronteira entre civilização e barbárie.

A imagem que repugnou o país é somente o ápice de uma ação que tem os donos da mídia como principais articuladores. É um movimento que também grita contra os direitos humanos, que não se conforma com a inclusão social, não se importa em entregar as riquezas e o futuro do país aos interesses do capital internacional, não se importa com uma justiça de duas caras, dois pesos e duas medidas, que não aceita as mudanças que ocorreram nos últimos anos e que beneficiaram, sobretudo, os mais pobres. Essa imagem é só uma amostra do nível de degradação a que estaremos expostos se as forças reacionárias dominarem novamente o Brasil.

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Celso Vicenzi é jornalista