Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A responsabilidade dos jornalistas

O recém-divulgado relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), criado pela ONU em 1990, precisa ser alvo de uma análise profunda por parte dos jornalistas brasileiros, regada a uma boa dose de autocrítica sobre como as questões ambientais vêm sendo tratadas pela mídia do país nesses mais de 15 anos.

Para começo de conversa, vale lembrar que durante e após a ECO-92 – a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro –, os jornalistas que ‘vestiram a camisa’ contra os graves temas então alertados foram taxados de ‘ecochatos’, sobretudo pelos coleguinhas da política e da economia, de cujas esferas decisórias derivam boa parte dos problemas socioambientais. Alguns levaram suas convicções para o campo da militância; outros procuraram abrir e manter brechas e trincheiras na imprensa comercial e/ou em meios alternativos. Outros, porém, simplesmente abandonaram a ‘causa’, depois de tentarem em vão ‘vender’ a seus chefes de reportagem e editores pautas relevantes sobre impactos ambientais e desenvolvimento sustentável.

O tamanho da encrenca

O Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul (NEJ/RS), que pretendia ser o ponto de partida para uma organização nacional dos profissionais interessados no tema, articulada com a Federação Internacional de Jornalistas de Meio Ambiente, não atingiu o intento mas ajudou a criar a Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental (RBJA), uma lista de discussão pela internet que hoje ‘conta com mais de 400 jornalistas inscritos, incluindo os maiores veículos de comunicação do país, além de profissionais de diversos países da América Latina’. Um esforço, sem dúvida, da maior importância, mas muito aquém das necessidades de um país do tamanho do Brasil, com a biodiversidade, as desigualdades regionais e as discrepâncias de mídia que o caracterizam.

Os resultados do quarto relatório do IPCC indicam o quanto esse tipo de intercâmbio tem que ser multiplicado para que os jornalistas brasileiros se dêem conta do tamanho da encrenca em curso e da responsabilidade que precisam assumir, tanto em relação à ‘mitigação’ (formas de reduzir a emissão de gás carbônico na atmosfera) quanto à ‘adaptação’ às mudanças climáticas (meios de proteger as populações dos seus agora inequívocos efeitos catastróficos). Esta responsabilidade depende, fundamentalmente, de uma mudança de mentalidade e da aquisição de competência para lidar com informações complexas, que vão muito além dos relatos factuais cotidianos.

As conexões global-local

Não dá para cobrir as questões ambientais com o padrão de jornalismo declaratório que se pratica hoje em dia, no qual repórteres descartáveis pelo excesso de oferta justificam a sua ‘produtividade’ e a qualidade do seu trabalho pela quantidade de aspas que inserem em cada matéria. Não dá para informar a população sobre os reais riscos socioambientais utilizando os mesmos procedimentos de alarmismo e banalização que têm caracterizado a produção de notícias sobre violência e corrupção.

Uma boa cobertura nessa área exige que os jornalistas compreendam os processos e métodos de produção do conhecimento científico que explica e aponta soluções para os problemas ambientais; que relacionem esses problemas com a falta de políticas públicas, de dotações orçamentárias adequadas e de recursos humanos capacitados para implementá-las e fiscalizá-las; que deixem claras as ligações entre a expansão sem controle do agronegócio (em especial as plantações de soja e a agropecuária extensivas) e as queimadas na Amazônia; que mostrem as conexões global-local entre acontecimentos tão distantes como as tsunamis asiáticas, as enchentes de Nova Orleans e as secas e cheias brasileiras; e que não se pautem exclusivamente pelas fontes oficiais e pelos PhDs de universidades estrangeiras (sobretudo estadunidenses), como se tornou corriqueiro.

Populações pobres e periféricas

Ao contrário do que se costuma considerar, a pauta ambiental – e sua boa cobertura – não depende da existência de um espaço exclusivo nos veículos de comunicação, nem tampouco de jornalistas ‘especializados’. Seus temas podem ser tratados em qualquer editoria e por qualquer profissional que se interesse e se capacite para lidar com a peculiaridade dessas informações e as particularidades de suas fontes. Como mostra a participação de vários pesquisadores brasileiros nos Grupos de Trabalho do IPCC e a presença constante de especialistas de ONGs nas arenas internacionais em que o desenvolvimento sustentável está em disputa, competências não nos faltam. Tudo depende do ponto de vista a partir do qual o assunto será tratado.

Ou seja, o jornalismo ambiental (assim como o científico) precisa ser visto não como uma ‘especialização’ e, sim, como uma abordagem transversal de temática complexa, sujeita a controvérsias, mas de alto interesse para todos os tipos de público. Sem essa mudança radical de enfoque e de procedimentos no trabalho jornalístico, será impossível assumir a responsabilidade que todos nós temos diante do aspecto mais grave que o relatório do IPCC enfatiza: a vulnerabilidade socioambiental das populações pobres e periféricas, mesmo no dito país mais rico do mundo, como ficou evidente em Nova Orleans.

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Doutora em Comunicação/Ciência da Informação, pesquisadora-associada do Nupef-Rits