Elizabeth Jinh é mineira do interior, mas tomou para si a tarefa de dar no populacho um banho de cultura irlandesa: no agora nobre horário das 6, a Globo leva ao ar a ficção improvável de imigrantes que aportaram ao Brasil trazendo carros e cavalos e mantiveram suas tradições de bruxarias e superstições. Tudo com o aval de Paulo Coelho, presente à trama como personagem e provavelmente consultor para assuntos sobrenaturais.
Para estear a estória, a autora semeia os diálogos com citações de literatos bretões célebres. Começou com Oscar Wilde, mas escorregou de saída. A esnobe Eva diz à tia: ‘Não acredito que a senhora, leitora de Shakespeare e Yeats, dê ouvidos a essas bobagens de bruxas!’ Em pelos menos um de seus clássicos, o dramaturgo inglês teve como personagens as três harpias. Esperemos o que virá com Joyce e Shaw para as massas ignaras.
‘Um banho de civilização’ – diz Eva, como disseram nossos líderes esportivos eruditos Felipão e Parreira sobre os jogadores ‘europeus’ justificado-lhes a convocação em detrimento dos caseiros – numa definição simpática para uma região onde até há pouco tempo cristãos e protestantes andavam se matando por questões seculares.
Hans Donner, que está na fase de plagiar a si mesmo, tratou de mixar Coração Alado e Roda de Fogo, época em que não tinha o luxuoso auxílio da tridimensionalidade computadorizada. A grandiloqüência da vinheta contrasta com as paisagens bucólicas das pradarias serranas e é um indício da pretensão da coisa toda. Mas o elenco é como o de Gilberto Braga: faz saber que a panela é mais talentosa que as outras ou o diretor de mais mão firme.
A ‘angústia da influência’
A ideologia carece de consistência história; é fantasia – vá lá. E permanece no ‘resgate das origens’, que ignora nossa maior característica cultural: a mestiçagem. Cace russos em Nova Odessa e norte-americanos em Americana: você encontrará brasileiros devidamente antropofagizados. As ‘Itálias no coração do Sul’ só existem nos folhetos turísticos ou nas intenções de folcloristas desorientados. O purismo afro só sobrevive no imaginário do que há de pior nos movimentos de negritude. (O maior veículo de cultura estadunidense no Brasil não são os imigrantes fundadores de Americana, SP, mas a Rede Globo que, no momento em que escrevo, anuncia para os aposentados e adolescentes a sessão da tarde High School Musical. Em contrapartida, sua novelinha reprisada para donas de casa apresenta belas imagens da capital maranhense.)
A ‘angústia da influência’, manifesta pelo texto de Jinh, não surpreende, porque é um mal que atinge a maioria dos autores de novela. Como diagnostica Amálio Pinheiro a respeito dos processos culturais na América Latina: ‘Ora, o continente é visto como ‘ser’ imperfeito, deformado, que teria deturpado as essências originais clássicas ou, no melhor do casos, prolongado, como cópia piorada, as influências das matrizes de tradição centro-européia, ora busca resgatar a identidade ou identidades perdidas, tentando aplicar aqui os conceitos e teorias desgastadas, (…) ignorando pensadores próprios que dão conta da relação entre corpo e paisagem a partir da condição mestiça (por exemplo, entre tantos, José Martí, Nicolás Guillén, Lezama Lima, Euclides da Cunha, Gilberto Freire).’
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Jornalista, pesquisadora na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e integrante da Rede Nacional de Observadores de Imprensa (Renoi)