Afinal, o que é a liberdade de expressão?
Liberdade de expressão é uma virtude liberal que está alicerçada na crença do pleno Estado de Direito e que se reforça pela qualidade do regime democrático. Quanto mais democrática uma sociedade política, mais livre, sob o ponto de vista dos direitos fundamentais, o seu povo. Trata-se, também, de uma conquista histórica, consagrada pelas Declarações de Direitos que foram fruto da luta dos homens contra o arbítrio. Num dado momento da história da humanidade, passou-se a proclamar que os cidadãos tinham certos direitos naturais e inalienáveis contra o Estado e perante os demais cidadãos. A liberdade de expressar-se livremente era um desses direitos, porque decorrência da liberdade de pensamento.
Erige-se, pois, como um reflexo da afirmação efetiva dos direitos fundamentais. O século 20 foi, gradualmente, consolidando os direitos que foram proclamados nos séculos 18 e 19.
Na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, dispunha, em seu art. 11, sobre a liberdade de expressão: “A livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, salvo responder pelo abuso desta liberdade nos casos determinados pela lei.”
E nos Estados Unidos foi a Primeira Emenda, de 1791, à Constituição de 1787, que garantiu a liberdade de expressão. Diz ela: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos.”
Conceitos em processo de atualização
A língua inglesa, inclusive, faz uma diferença substancial entre as expressões liberty e freedom. A primeira tem uma conotação de limitação, que implica a existência de um sistema de regras, uma rede de contenção e ordem, portanto, estreita associação da palavra com a vida política. A segunda, por sua vez, expressa um significado mais geral, que varia de uma oposição à escravidão à ausência de algum ônus psicológico ou pessoal. Aqui o conceito é mais amplo, mais filosófico.
Os founding fathers da nação norte-americana tiveram bem presente essa realidade quando criaram um sistema de regras jurídicas baseadas numa apreciação filosófica da realidade concreta, pragmática. A liberdade era a expressão da luta contra o arbítrio em todos os sentidos, e “ser livre” estava condicionado à busca da felicidade. Felicidade como ideal político, segundo nos ensina John Locke e outros liberais.
Não é por acaso que o segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos assenta essa crença: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.”
São vários os níveis e alcances da liberdade. Ela varia de grau e de intensidade. No entanto, são conceitos que estão em contínuo processo de atualização e adaptação. A liberdade puramente moral foi se aperfeiçoando a ponto de consistir, mais adiante, o sentimento de participação na distribuição da riqueza. Afinal de contas, só é plenamente livre quem tem condições de manter-se e gozar dos benefícios econômicos e sociais gerados pelo Estado e pela sociedade, mas isso já é uma outra história.
A doutrina do abuso de direito
Após a Segunda Guerra, com a criação da ONU e, principalmente, após a Declaração de 1948, os direitos humanos passaram a ser um dos temas dos quais mais se tem escrito e falado. Isso atinge as questões essenciais relacionadas com as minorias étnicas, políticas, com as questões de gênero etc. No entanto, o desrespeito aos direitos humanos continua a ser uma realidade. Entretanto, as minorias e grupos discriminados que sentem seus direitos fundamentais não observados ou violados têm todo o direito de buscar os mecanismos amplos para fazer valerem seus direitos. Assim, em nome das liberdades constitucionais, nenhuma lei pode proibir a expressão de qualquer opinião. Os demais países ocidentais, na medida em que foram incorporando os princípios democráticos, foram reproduzindo tais crenças.
No Brasil, como em muitos países democráticos, a liberdade de expressão é um princípio inviolável segundo o qual toda pessoa pode expressar livremente uma opinião, positiva ou negativa, sobre um assunto, mas também sobre pessoas e instituições. É, portanto, um direito; mas, como todo direito, deve ser exercido dentro de limites balizados pelas regras jurídicas e, assim, seu abuso pode (e deve) ser punido, segundo a doutrina do abuso de direito.
A doutrina do abuso de direito desenvolveu-se principalmente durante o século 19, particularmente em torno dos direitos de propriedade. Um proprietário não podia sujeitar os seus vizinhos a distúrbios além daqueles razoáveis no uso e gozo do exercício de seu direito de propriedade pacífica. Por isso, não admitia a lei a possibilidade de usar a propriedade com intenção maliciosa. Por exemplo: não era livre para fazer fogo no seu jardim, onde o combustível e a fumaça contamine o ar e infeste toda a vizinhança do bairro.
A mesma doutrina do abuso de direito foi implementada no caso de uma pessoa exceder a sua liberdade de expressão causando impacto negativo para terceiros. Isto significa que a pessoa pode ser livre para se expressar, não podendo sofrer censura prévia. Porém, se sua ação externa causar danos a quem quer que seja, mediante ofensas, este terá direito a recorrer às vias legais para buscar a reparação dos danos sofridos, sejam eles materiais ou morais. Essa liberdade fundamental, em nossa Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, apreenta dois desdobramentos lógicos: a liberade de pensamento, no incisiso IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; e a liberdade de expressão” e a liberdade de expressão, no inciso IX: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”
Histórias curtas ou situações cômicas
A limitação à livre manifestação de pensamento e de expressão é a própria lei. Mesmo os leigos sabem que não existem direitos absolutos, salvo àqueles personalíssimos. Segundo a Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Isso delimita o campo geral de ação, em conformidade com o ordenamento jurídico como um todo. Depois, deixa às demais leis, conforme a matéria e o âmbito de vigência, as formas de interpretação e aplicação aos casos concretos.
Tudo porque há um princípio geral de justiça, mais do que de direito, que afirma que a liberdade é ser capaz de fazer qualquer coisa que não prejudique os outros: assim, os direitos de cada homem não têm limites senão àqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei. Esta é uma outra formulação do ditado de que a liberdade de um termina onde começa a liberdade de outro ou dos outros.
Recentemente, houve uma grande polêmica acerca das piadas “politicamente incorretas” em face à liberdade de expressão, quando o humorista de stand up comedy, Rafinha Bastos, referiu-se ao estupro em mulheres feias. Em primeiro lugar, quem vai a um show do Rafinha Bastos sabe que se trata de stand up comedy. Um tipo de humor que não é muito comum por aqui. É bastante popular nos países de língua inglesa, onde o comediante está, invariavelmente, sozinho no palco. Literalmente, como o nome inglês sugere, ele está lá, sozinho e de pé no palco enfrentando a plateia e seu objetivo é contar histórias curtas ou situações cômicas do cotidiano. Por isso a característica é a agilidade de raciocínio e o resultado é imediato. Não é por outro motivo, que muitas vezes esses espetáculos artísticos são realizados em bares, pubs e restaurantes, justamente para dar a ideia de descontração. E é isso que muitas vezes identifica o humor do stand up. Algo semelhante a como se estivéssemos conversando sobre situações pessoais que nos envolvessem ou aos nossos amigos ou conhecidos.
Parvos e néscios
Quando se analisa friamente cada situação, vemos que as pessoas em situações normais de descontração, geralmente estão sempre falando sem níveis de controle absoluto. Cai o autopoliciamento, cai a autocensura. Elas permitem-se falar de si mesmo ou de alguém (bem ou mal). Muitas vezes fazendo piadas com isso. E quantas vezes são ditos os mais disparatados absurdos? No entanto, como se trata de pequenos grupos ou de conversas reservadas, isso não causa espanto ou revolta. Agora, quando se trata de um lugar público, como um show, teatro, televisão ou envolva alguém conhecido que tenha repercussão no que diz ou fala, aí temos um nível progressivo de repercussão positiva ou negativa. Os níveis de controle alheio são maiores e mais rígidos.
Por isso, o humor deve estar contextualizado com a finalidade que ele enseja ou o que ele quer transmitir. É um estado de espírito que expressa sentimentos e sensações. Se nos lembrarmos da etimologia da palavra, veremos que ela está associada a estado de ânimo, sensação e grau de disposição que vem da ciência natural, da medicina. Desse modo, o que está em desacordo com isso, pode ser considerado atípico, anormal.
Portanto, depende do contexto e da situação. Não acredito no humor – do qual a piada é um dos instrumentos –, limitado em nome do “politicamente correto”. Da mesma forma que não acredito no humor como instrumento de agressão pura e simples. Qualquer forma de ofensa deliberada contra minorias ou segmentos sociais pode se traduz em agressão gratuita. Isso seria valer-se da liberdade de expressão para atingir objetivos desvirtuados. Todavia, sou contra qualquer tipo de parvice. Os parvos e os néscios são os tipos mais perigosos e traiçoeiros. Deve-se analisar o contexto, a forma, enfim, uma série de elementos daquilo que foi dito ou feito, mas sempre depois. Nunca antes, pois então será censura prévia. E isso, numa democracia, é inadmissível. Fico absolutamente enojado quando alguém se arvora em censor da imprensa, por exemplo.
Humor para mascarar o preconceito
O problema é que os brasileiros são hipócritas. Querem liberdades, mas não na plenitude. Liberdade para eu falar dos outros, tudo bem. Agora quando falam de mim, eu processo. Isso é um absurdo. Sempre estamos atrás de um líder personalista que nos diga o que ler, o que fazer e como ser. Basta você discordar do que pensa a grande maioria para ser objeto da ira de grupos e da patrulha ideológica.
A matéria-prima do humor é toda e qualquer situação da vida. O humor feito sobre qualquer situação mostra (ou quer mostrar) uma apreciação positiva ou negativa. Ressaltar determinado aspecto. Isso também vale para qualquer grupo ou minoria. Os políticos são um bom tema de humor em qualquer parte do mundo. Não porque sejam engraçados suficientemente. Às vezes o são pelas trapalhadas ou gafes que cometem. Mas, invariavelmente, são objeto dos humoristas pelo grotesco da sua atuação mediante a mentira, a trapaça e o engano. E a forma de vingança, de crítica, seja lá qual for o instrumento para castigá-los, é mostrar o quão cabotinos e canastrões ele são ou podem ser. Há um ditado latino que diz ridendo castigat mores, que numa tradução livre seria “pelo riso corrigem-se os costumes”.
Já as minorias, são objeto de humor (positivo e negativo), também chamado de “negro” – o que seria, para alguns, politicamente incorreto, pelo traço marcante que possuem. O humorista busca a característica do exagero, da situação-limite para expressar dada realidade. Veja-se, por exemplo, as charges. Elas são um humor gráfico que expressa uma pontual característica a ser ironizada, criticada. O mesmo vale para os personagens estereotipados em caracterizações televisivas e cinematográficas.
Outro bom exemplo de minoria que se presta ao humor são os judeus (como aliás, muitos outros povos), o que gerou uma literatura própria, refinada, decorrente da tradição oral. Não fora isso, e não teríamos o excelente humor judaico. Judeus como Mel Brooks, Gene Wilder, Woody Allen, Irmãos Marx e, entre nós, Moacyr Scliar, sempre expuseram a condição judaica com um humor refinado, reflexivo, que vem do sofrimento dos que sempre foram perseguidos e discriminados e encontraram no riso contido uma forma de encarar a vida. Com o passar do tempo, esse humor foi deixando de ser passivo para ser mais ativo. Obviamente que a tentativa de usar o humor de forma distorcida, como meio de mascarar o preconceito – que é uma manifestação indecorosa de ódio –, deve ser sempre repudiada.
Danos à honra, à intimidade e à privacidade
Recentemente, pudemos ver nos cinemas o filme Borat, onde há uma referência humorística pesada sobre a situação dos judeus. E saiba-se que o ator-protagonista, Sacha Baron Cohen, é um judeu inglês praticante. Ele encontrou uma forma de humor que se arma do próprio discurso antissemita para mostrar o efeito do antissemitismo. É uma autorreferência – o self que referia Carl Gustav Jung, como arquétipo de si mesmo.
A liberdade de expressão é um conceito amplo, garantido pelas Constituições democráticas, que deve ser adequado ao limite da esfera da intimidade pessoal e dos direitos subjetivos da personalidade humana, como a honra, a dignidade etc. Para além disso, é o abuso que deve ser reprimido.
Enquanto houver a capacidade criativa e de expressar-se, o ser humano vai achar formas de dizer aquilo que pensa. Pensar e agir (ou dizer) são atos naturais, instintivos do ser humano. Portanto, não podem existir limites subjetivos para o humor. Na verdade, o limite subjetivo do qual falo é o bom senso e o bom gosto. Acredito que as mesmas pessoas que ficaram ofendidas com a referência ao estupro de mulher feia nas piadas de stand up do Rafinha não se ofendem quando ouvem ou veem essas cenas de funk pancadão nas favelas do Rio de Janeiro.
Objetivamente, os limites à liberdade de expressão são aqueles delineados pelo ordenamento jurídico. Há uma Constituição que, do mesmo modo que estabelece o direito de liberdade de expressão, também assegura que os limites são os danos causados à honra, à intimidade, à privacidade. Se esses limites forem ultrapassados, quem causou esses danos deverá ser responsabilizado penal, civil e administrativamente, se for o caso, gerando, inclusive, indenizações para reparar o ofendido.
O impróprio, o provocador e o obsceno
Assim, se há o direito da livre expressão, há o direito daquele que se sente ofendido de buscar a tutela de seus direitos para coibir ou reparar os abusos. Portanto, caberá aos tribunais, no pleno exercício da jurisdição constitucional e legal, aquilatar a liberdade de expressão e os seus limites objetivos e subjetivos. Nem mais, nem menos.
Portanto, piadas que hoje são consideradas politicamente incorretas, que no geral falam sobre as minorias ou violência, sempre existiram. O que faz, talvez, com que elas sejam atualmente sejam consideradas impróprias é o contexto no qual são ditas e o público a que se referem. E, isso, depende de cada pessoa e de cada sensibilidade sobre o certo e o errado. Invadir essa esfera é invadir a liberdade individual. O foro íntimo de cada pessoa vai dar a dimensão do discernimento. Ocorre-me, a esse respeito, uma discussão similar com relação ao ato pornográfico. Numa decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1954, o juiz Potter Stewart, diante da dificuldade em definir o que era obscenidade ou ato obsceno dissera: “Eu não sei o que ela é, mas reconheço quando vejo uma.”
Por outro lado, a sociedade, numa tentativa de se “modernizar” e “romper” com o passado e suas tradições arcaicas, quer espelhar novos padrões de comportamento ético. Um desses padrões é a linguagem. O que você diz acaba sendo a forma como você pensa ou quer pensar. É um compromisso que começa pela palavra, pela linguagem. Como o fundamento bíblico da palavra: “No princípio era o verbo…” Até que ponto isso é uma realidade ou uma tentativa de mudar hábitos, só o tempo dirá, mediado pela função da hermenêutica e da pragmática. O estudo da semiótica tem muito a contribuir nesse campo.
Mas o impróprio, o maldito, o provocador, o obsceno sempre existirão, como um dia existiram Calígula, Bocaccio, Bocage, Larry Flint entre tantos outros que desafiaram o senso comum ou o “politicamente correto”.
Afinal, do mesmo modo que a política não é espaço de atuação só de anjos, a sociedade civil não é só constituída de homens puros.
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[Ben-Hur Rava é professor universitário e advogado]