Um homem que começou na imprensa em 1940 está indignado com uma reportagem. Ele se chama Armenio Guedes, nasceu em 1918, entrou no Partido Comunista Brasileiro em 1935, saiu em 1983, trabalha na Gazeta Mercantil desde 1988.
Está indignado porque a reportagem "Traição e extermínio", da revista IstoÉ (nº 1.799, 31/3/04), inverteu uma declaração sua para tentar dar credibilidade a acusações de traição feitas a Givaldo Siqueira, antigo dirigente do mesmo PCB hoje ligado ao PPS. A reportagem é assinada por Amaury Ribeiro Jr., Eugenio Viola e Tales Faria.
A frase publicada em IstoÉ foi: "Givaldo mandou meu irmão para a morte. O Comitê sabia da carta e mesmo assim foi feita a operação".
Armenio afirma que disse exatamente o contrário. Que não foi Givaldo a pessoa que deu instruções para Célio Guedes, irmão de Armenio, ir ao Uruguai buscar de carro o dirigente Fued Saad, um médico urologista, professor da USP, que passara a exercer exclusivamente a militância clandestina e vinha da União Soviética. Que não poderia ter sido Givaldo porque ele não pertencia à "direção restrita", núcleo executivo do Comitê Central do PCB que tomou a decisão. Que, se tivesse sido Givaldo, ele não diria, porque não se tratava de uma ação individual, mas de uma decisão coletiva.
Da denúncia à intriga
"Falei com o repórter [Amaury Ribeiro Jr.] sobre esse assunto porque falei no Comitê Central, quando ele se reuniu no Brasil [o Comitê Central do PCB, do qual Armenio fazia parte então, funcionou no exílio durante boa parte da década de 1970]", conta Armenio. "Fiz uma acusação contra a irresponsabilidade de terem mandado Celito buscar Saad. O [Giocondo] Dias respondeu: ‘Um revolucionário é como um soldado. Vai para o front sabendo que pode morrer’. E eu retruquei: ‘Mas quando o comandante manda o soldado para o front numa missão que não tem nenhuma importância estratégica ou tática e ele morre, há um conselho de guerra’."
Armenio relata que foi procurado por Amaury Ribeiro Jr. cerca de um mês atrás. O repórter lhe disse que IstoÉ estava preparando uma edição especial relacionada aos 40 anos do golpe de 64 e haveria uma parte sobre a repressão política. "Disse a ele que tinha o caso de Célio, meu irmão", relembra Armenio.
"A polícia deu a versão de que ele havia se suicidado, tinha se jogado de uma janela do sexto andar do prédio do Cenimar [Centro de Informações da Marinha], no Rio de Janeiro. Minha mãe viu o corpo. Não era o de uma pessoa que se joga do sexto andar. A versão que tínhamos era a de Fued Saad, preso com Célio. Dizia que, quando foram acarear Celito com Adauto [o "agente Carlos", um espião no PCB a serviço da CIA, de quem o Jornal do Brasil tinha publicado extensa e bombástica entrevista], ele avançou para bater nele e lhe deram um tiro. Eu não estou muito convencido dessa versão, mas é a única que tenho."
Armenio prossegue: "Então, disse ao repórter que me provocava grande indignação o fato de Célio ter ido para uma missão sabendo que dificilmente voltaria. Porque a polícia tinha todos as informações sobre Saad. Ainda ontem [28 de março de 2004] encontrei-me com um sobrinho que tinha ouvido de Célio, na véspera da viagem ao Uruguai: ‘Vou fazer uma viagem, não sei se vou voltar’. Quando houve a primeira reunião do Comitê Central no Brasil, aqui em São Paulo, eu protestei contra isso. Acho que foi falta de responsabilidade do Comitê Central. O que Saad iria fazer, trazer 60 mil dólares da União Soviética, podia ser feito por algum conhecido, algum amigo".
Segundo Armenio, Givaldo Siqueira foi um dos que se bateram para que Fued Saad não entrasse no Brasil. "Givaldo achava que Célio deveria ir ao Uruguai apenas para dizer a Saad que não entrasse. E não ocorreria nada. Eles foram presos porque a polícia, que os interceptou no caminho, tinha fotos de Saad. Ele era responsável pela Seção Internacional e Adauto já tinha dado o serviço. A casa do Saad, no Rio, tinha sido invadida e vasculhada. E mesmo assim mandaram Célio vir com ele do Uruguai."
O não dito por dito
Tudo isso, narra Armenio, foi dito ao repórter no primeiro contato, em fevereiro. "Desde então, ele não me telefonou mais", conta. "Na quarta-feira passada [dia 24/3], ele me ligou, muito afobado. Disse: ‘Tenho a informação de que foi Givaldo que deu a ordem. Você confirma?’. Eu digo: "Não, não confirmo. Não foi Givaldo. Ao contrário. Posso lhe afirmar que não foi Givaldo que deu essa ordem ao Célio. Isso foi decisão da direção restrita do partido, para a qual Célio trabalhava’. Ele insistiu: ‘Mas não pode ter sido o Givaldo que em nome da direção deu essa ordem ao Célio?’ Respondi: ‘Não. Givaldo não pertencia a essa direção’. Ele: ‘Então, quem foi?’ Eu: ‘Não sei, mas posso lhe afirmar que não foi Givaldo’."
Vale a pena ler de novo o que foi publicado:
"Mas o dirigente [Givaldo] também é atacado por outro ex-colega, o jornalista Armênio Guedes, irmão de Célio: ‘Givaldo mandou meu irmão para a morte. O Comitê sabia da carta e mesmo assim foi feita a operação’, diz".
Ao contrário do que disse ao repórter de IstoÉ</i>, Armenio sabe quem deu a Célio Guedes a ordem para fazer a viagem. Nunca quis revelar quem foi. Sempre achou que essa pessoa, de boa-fé, apenas tinha transmitido uma decisão coletiva, não era responsável por ela. Em tempo de repressão só com muita sorte se escapa de fazer algo que possa pôr alguém em risco.
Esse nome, que Armenio sabe e não quis dizer, os repórteres não apuraram. Ou talvez não lhes interessasse, porque desmancharia o único depoimento que poderia dar credibilidade a uma reportagem em que a verdade dos fatos é sacrificada ao propósito de encontrar um alvo, Givaldo Siqueira.
Já no título há uma sintomática inversão de valores. A traição vem em primeiro lugar, o extermínio, a ação da ditadura militar, depois.
A reportagem traiu. O conceito de reportagem foi traído.