Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A TVE ou não é?

No princípio, era o verbo. E o verbo foi muito mal empregado. E continuou sendo mal empregado pelos tempos afora. O resultado aí está: a confusão reinante na área da TV educativa, também chamada de TV cultural, também chamada de TV pública, também chamada de TV estatal, também chamada de TV universitária, também chamada de TV comunitária.


No momento em que a opinião pública toma conhecimento de um projeto que está sendo apresentado pelo Governo Federal visando à criação de uma nova Rede Pública de TV, há que se retornar ao princípio de tudo para poder entender do que se está tratando e, também, para tentar colaborar um pouco com dados importantes para os debates que estão se realizando, como, por exemplo, os do I Fórum Nacional da Televisão Pública.


Antes de tudo, cabe explicar o termo radiodifusão, que será fartamente utilizado neste texto. Radiodifusão é a difusão feita por meio de ondas de rádio. A televisão e o rádio são meios de comunicação que utilizam essas ondas para a sua difusão. No caso da televisão este tipo de difusão também é conhecido pela expressão televisão aberta. E, pelo que poderá ser lido a seguir, talvez o termo correto fosse radioconfusão! (termo introduzido pela jornalista Elvira Lobato, profunda conhecedora desse assunto, em artigo publicado na Folha de São Paulo, em 25/05/04).


Cabe observar, também, que este texto dará ênfase maior aos problemas legais que envolvem a área da televisão, pois as emissoras de rádio não têm grande preocupação em constituir uma rede nacional, pois, na verdade, sua atuação é primordialmente local, embora haja, também, interesse do governo em instituir uma programação que seja veiculada em rede nacional.


Doações, patrocínios, investimentos


A lei que rege a radiodifusão é muito antiga. Trata-se do Código Brasileiro de Telecomunicações, lei nº 4.117, promulgada em 27/08/1962, e que já completou, portanto, 44 anos de existência.


Muitos analistas se referem a essa lei como sendo um reflexo do pensamento do período da ditadura. Embora ela seja anterior à revolução de 1964, há uma razão para essa referência: a lei levou alguns anos até ser regulamentada, o que acabou ocorrendo por meio do Decreto-Lei nº 236, de 27/02/1967, baixado pelo regime militar para complementar e modificar o Código. Um Código que não citava, em qualquer um de seus itens, a Radiodifusão Educativa.


E foi então que surgiu o verbo. E com ele, a primeira confusão.


Na verdade, esse Decreto-Lei foi o primeiro diploma legal que fez a separação entre Radiodifusão e Radiodifusão Educativa e, ao fazê-lo, impôs restrições absolutamente inadequadas, dispostas, principalmente, no caput do Art. 13 e em seu Parágrafo Único:


‘Art. 13 – A televisão educativa se destinará à divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates’.


‘§ único: A televisão educativa não tem caráter comercial, sendo vedada a transmissão de qualquer propaganda, direta ou indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos’.


Em virtude dessa regulamentação, a radiodifusão foi dividida em dois segmentos distintos: a radiodifusão considerada comercial e a radiodifusão educativa.


Como essa lei está em vigor até hoje, pode-se concluir que, sob o aspecto estritamente legal, só existem dois tipos de emissoras de televisão: a comercial e a educativa. Qualquer outra denominação que esteja sendo utilizada não possui respaldo legal. E, por isto, torna-se necessário responder a pergunta que não quer calar: a TVE ou não é?


Aqui se faz necessário abrir um parêntese, pois, desde o início, o caput do artigo supracitado jamais foi cumprido por qualquer das emissoras educativas, enquanto que o disposto no seu parágrafo único sempre foi levado à risca, principalmente pelos órgãos fiscalizadores, em virtude da pressão exercida pelas emissoras comerciais. Interessante, ainda, observar que o texto legal só se refere à televisão educativa, não havendo qualquer restrição para a rádio educativa. Portanto, não existe qualquer documento legal que impeça as rádios educativas de transmitir propaganda e publicidade. A proibição vigora porque o Ministério das Comunicações considera que, por analogia, ela também deva ser aplicada às rádios. Mais adiante poder-se-á verificar que a analogia não funciona para todos os casos.


Na verdade, a restrição a que se refere o parágrafo único do art. 13 do Decreto-Lei nº 236 foi implicitamente revogada quando da promulgação da Lei nº 7.505, de 02/07/1986, também conhecida como Lei Sarney, que instituiu benefícios fiscais às operações de caráter cultural e artístico. Essa lei previa expressamente que as pessoas jurídicas que viessem a produzir tais operações pudessem receber doações, patrocínios e investimentos e, ainda, que pudessem divulgá-los. O Art. 2º, VI, da Lei Sarney incluiu, entre as operações passíveis de ser incentivadas, a produção de vídeos, filmes e outras formas de reprodução videofonográfica, de caráter cultural.


Problemas e restrições


A revogação implícita do parágrafo único do art. 13 está respaldada pelo art. 2º, parágrafo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil que estabelece: ‘A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior’.


A Lei Sarney foi posteriormente revogada, mas em 1991, foi promulgada outra, a Lei nº 8.313, de 23/12/1991, conhecida como Lei Rouanet, que não só restabeleceu os princípios contidos na Lei Sarney, como ainda incluiu expressamente como área cultural passível de receber incentivos, em seu art. 25, IX, ‘a rádio e televisão, educativas e culturais, de caráter não comercial’.


Aqui se fecha este parêntese visando a organizar, minimamente, este texto que, embora trate de situações caóticas, não pode e não deve descambar para o caos.


Uma vez criada a figura da radiodifusão educativa, em 1967, coube ao Ministério da Educação – MEC, de acordo com o disposto no art. 6º da Lei Nº 4024, de 20/12/1961, estabelecer as normas e os critérios que passariam a reger a citada área. Esse art. 6º determinava que: ‘O Ministério da Educação e Cultura exercerá as atribuições do Poder Público Federal em matéria de educação’.


A primeira providência surgiu em 1972, quando o MEC resolveu criar o Programa Nacional de Teleducação – PRONTEL, com o objetivo de coordenar as atividades de teleducação do país, que deveriam ser implantadas pelas emissoras educativas de rádio e de televisão.


Mas, somente em 1976, O MEC resolveu lançar o primeiro diploma legal tratando de radiodifusão educativa. Juntamente com o Ministério das Comunicações, baixou a Portaria Interministerial MEC/MINICOM Nº 832, de 08/11/1976 que estabelecia os critérios para a manifestação do MEC em relação à concessão de canais de radiodifusão com finalidades exclusivamente educativas. Com isto, a concessão de canais educativos passava a ser feita pelo Ministério das Comunicações, após a emissão de um Parecer Técnico pelo Ministério da Educação. Tais critérios foram regulamentados, posteriormente, pela Portaria MEC Nº 232, de 20/03/1980.


O MEC, por sua vez, delegou à Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa – FCBTVE a emissão do Parecer Técnico, após a análise da documentação necessária (item V da supracitada Portaria) à concessão da outorga, conforme dispunha o art. 7º da Portaria Interministerial MEC/MINICOM Nº 162, de 20/08/1982: ‘cabe à Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa representar o Ministério da Educação e Cultura nos procedimentos de reserva de canais de radiodifusão sonora e de sons e imagens educativos e opinar sobre a concessão ou permissão de execução de serviços de radiodifusão educativos, observada a competência legal do Ministério das Comunicações’.


Essa mesma Portaria continha disposições que diziam respeito à definição do que seriam os ‘programas educativo-culturais’ e, também, uma outra relacionada com o velho conhecido parágrafo único do art. 13 do Decreto-Lei nº 236. Isto porque, em seu art 3º estabelecia: ‘A Radiodifusão Educativa destina-se exclusivamente à divulgação de programação educativo-cultural e não tem finalidades lucrativas’.


Até então, a legislação existente apresentava restrições e pequenos problemas, mas nada que pudesse ser considerado como um complicador para a área da radiodifusão educativa.


Atuação independente


Em 1975 surgiria o primeiro dispositivo legal complicador. Neste ano, foi promulgada a Lei nº 6.301, de 15 de dezembro de 1975 que criava a Empresa Brasileira de Radiodifusão – Radiobrás. Esta lei dispunha no item I de seu art. 1º que somente a ela competiria: ‘implantar e operar as emissoras, e explorar os serviços de radiodifusão do Governo Federal’. Assim, surgia o primeiro obstáculo de ordem legal no que tange às transmissões das três emissoras federais que pré-existiam à lei em questão (TVE do Rio de Janeiro, TV Universitária de Pernambuco e TV Universitária do Rio Grande do Norte). No entanto, essa lei não chegou a ser posta em prática por não haver interesse da Radiobrás em assumir essas emissoras.


Mas essa lei viria a causar uma grave distorção nos anos que se seguiram, pois qualquer organismo federal (universidade, escola técnica, governo do DF e outros) que se interessasse em obter um canal de rádio educativo ou de televisão educativa era obrigado a criar, dentro de sua própria estrutura orgânica, uma Fundação privada para solicitar, por meio dela, a outorga do canal.


Na verdade, tratava-se de um expediente que acabou sendo largamente utilizado com o objetivo de burlar a referida lei e acabou sendo uma outra razão para que ela não chegasse a ser posta em prática, já que não havia outros canais federais a serem absorvidos pela Radiobrás.


A esta altura dos acontecimentos, ou seja, por volta de 1977, existiam algumas rádios educativas e as seguintes emissoras educativas de televisão: a TV Universitária de Pernambuco (emissora pioneira, criada em 1967), a TVE do Amazonas, a TVE do Ceará, a TVE do Espírito Santo, a TVE do Maranhão, a TVE do Rio de Janeiro, a TV Universitária do Rio Grande do Norte, a TVE do Rio Grande do Sul e a TV Cultura de São Paulo, todas criadas entre 1968 e 1974.


O surgimento destas emissoras não obedeceu a qualquer tipo de planejamento de governo. Assim, a razão social e a vinculação de cada uma delas tinham raízes as mais diversas, como pode ser comprovado pelo quadro abaixo:











































EMISSORA RAZÃO SOCIAL VINCULAÇÃO

TVE do Rio de Janeiro


Fundação Publica


Federal (Ministério da Educação)


TVE do Amazonas


Fundação Publica


Estadual (Sec. Comunicação)


TVE do Ceará


Fundação Publica


Estadual (Sec. Educação)


TVE do Espírito Santo


Fundação Publica


Estadual (Sec. Educação)


TVE do Maranhão


Fundação Publica


Estadual (Sec. Educação)


TVU de Pernambuco


Universidade


Federal (Ministério da Educação)


TVU do Rio G. do Norte


Universidade


Federal (Ministério da Educação)


TVE do Rio G. do Sul


Administração Direta


Estadual (Sec. de Educação)


TV Cultura de São Paulo


Fundação Privada


Estadual (Sec. de Cultura)


Todas atuavam de forma independente, sem qualquer tipo de interatividade. Essa situação perdurou até 1978, quando, por iniciativa do PRONTEL, foi realizada a primeira Reunião das TVs Educativas, em Nova Friburgo, RJ. O resultado deste encontro inicial foi a formação de uma pequena rede de emissoras (constituída por essas nove emissoras) com o objetivo de transmitir a Copa do Mundo de Futebol de 1978, pois a TV Cultura de São Paulo detinha os direitos de transmissão e se dispôs a compartilhá-los.


A primeira rede


Em 1979, ainda por iniciativa do PRONTEL (que, neste mesmo ano, já havia se transformado em Secretaria de Aplicações Tecnológicas – SEAT/MEC), foi realizada uma nova reunião das nove emissoras, em Natal, RN. Nesta reunião, foi criado o Sistema Nacional de Televisão Educativa – SINTED, cuja coordenação político-administrativa ficou a cargo da SEAT/MEC, enquanto a coordenação operacional ficou sob a responsabilidade da TVE do Rio de Janeiro (uma unidade da FCBTVE), emissora diretamente vinculada ao Governo Federal.


Em 1982, a Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa, embora mantivesse esta denominação, teve a sua sigla modificada de FCBTVE para FUNTEVÊ. Mas a sigla não foi a única alteração. A FUNTEVÊ incorporou a SEAT e, também, o Serviço de Radiodifusão Educativa do MEC – SER, órgão responsável pela gestão da Rádio MEC, cuja história (que não será contada neste texto) confunde-se com a trajetória da radiofonia no Brasil, pois suas transmissões pioneiras iniciaram-se em maio de 1923.


Com estas alterações, as coordenações político-administrativa e operacional do SINTED passavam a ser feitas pela mesma entidade.


Assim, iniciava-se uma nova etapa na história da radiodifusão educativa. A já citada Portaria Interministerial MEC/MINICOM Nº 162, de 20/08/1982, determinava em seu Art. 6º que: ‘O Ministério da Educação e Cultura definirá, em atos próprios, a criação de um Sistema Nacional de Radiodifusão Educativa, englobando radiodifusão sonora e de sons e imagens, observada a competência legal do Ministério das Comunicações’. Esta Portaria viria a ser ligeiramente modificada pela Portaria Interministerial MEC/MINICOM Nº 316, de 11/07/1983.


E, em conseqüência, o SINTED acabou se transformando em SINRED (Sistema Nacional de Radiodifusão Educativa), ato formalizado pela Portaria MEC Nº 344, de 09/08/1983, cujo texto oficializava, em seu parágrafo 2º do art. 3º que: ‘A coordenação do Sistema caberá à Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa’.


O SINRED tinha como objetivo permitir que as emissoras integrantes veiculassem uma programação constituída por programas produzidos por todas, diferentemente do que ocorria, e ainda ocorre, com as redes comerciais, onde há uma ou duas emissoras cabeças de rede, e as demais meramente retransmitem a programação por elas produzida. Constituiu, na verdade, a primeira rede nacional de televisão pública.


Legislação inovadora


A TVE do Rio de Janeiro coordenava as operações do SINRED e, nos primeiros anos, fez uso do sistema de microondas da Embratel para gerar as imagens da programação transmitida em conjunto pelas emissoras integrantes. Em 1987, com a entrada em funcionamento do satélite Brasilsat 1, a TVE/RJ passou a ser a única emissora com acesso ao satélite. Isto reforçou a sua condição de coordenadora operacional.


Durante esse período surgiram novas emissoras educativas, como a TV Cultura do Pará, a TVE do Piauí, a TVE de Alagoas, a TV Aperipê de Sergipe, a TVE da Bahia, a TV Minas Educativa e Cultural, a TVE do Paraná, a TVE do Mato Grosso do Sul, além da TVE de Alfenas e da TVE de Juiz de Fora que foram as primeiras geradoras não localizadas em capital de Estado. Essas dez novas emissoras vieram se juntar às nove iniciais e, por muitos anos (até 1994), integraram o SINRED, até a sua extinção, em 1996.


Porém, entre 1983 e 1994, houve uma importante alteração do ‘status quo’. No mesmo ano da promulgação da nova Constituição, o governo federal decidiu lançar mais uma modificação do Regulamento dos Serviços Especiais de Repetição e de Retransmissão de Televisão (as versões anteriores foram explicitadas pelos Decretos Nº 52.795, de 31/10/1963, Nº 81.600, de 25/04/1978 e Nº 87.074, de 31/03/1982), E, essa modificação trouxe uma novidade que iria marcar, de forma indelével, o futuro da radiodifusão educativa. Isto porque, o art 1º do Decreto Nº 96.291, de 11/07/1988, estabelecia: ‘as estações retransmissoras de programas gerados por televisões educativas poderão realizar inserções locais da programação definida na alínea ‘f’ do art.4º’. Essa alínea ‘f’ estava assim definida: ‘Programas de Interesse Comunitário – são programas noticiosos ou de outra natureza de interesse da comunidade servida por retransmissora de televisão educativa’.


Esse decreto foi inicialmente regulamentado pela Portaria Minicom Nº 93, de 19/07/1989, que determinava que o conteúdo da programação a ser inserida obedecesse aos critérios estabelecidos na Portaria Interministerial MEC/Minicom Nº 162, de 20/08/1982 e que o tempo de inserção dos programas locais não ultrapassasse a 15% (cerca de duas horas diárias) do total da programação da estação geradora a que a retransmissora estivesse vinculada.


Essa ‘abertura dos portos’ fez com que as emissoras geradoras não precisassem mais implantar, por conta própria, suas retransmissoras, pois a possibilidade da inserção de programação local poderia atrair outros interessados na implantação de estações retransmissoras. Com efeito, houve, logo em seguida, um crescimento enorme do número de retransmissoras e, em conseqüência, de todo o sistema. Essas retransmissoras, tecnicamente denominadas de mistas, passaram a autodenominar -se ‘televisões comunitárias’.


Mas, começaram também a surgir os efeitos colaterais: como não havia uma regulamentação específica, a maioria das primeiras retransmissoras implantadas pertencia a políticos ou a empresários. Poucas foram as entidades de caráter realmente educativo que se interessaram pela novidade. E, por esta razão, aconteceram diversos desvios dos rumos que constituíam os objetivos da legislação inovadora. Várias retransmissoras mistas passaram a inserir publicidade (expressamente proibida na já citada Portaria Nº 93) enquanto outras transmitiam jogos de futebol gerados por emissoras comerciais. Houve até o caso de uma retransmissora, pertencente à Prefeitura de um pequeno município, que transmitiu a cerimônia de casamento da filha do Prefeito, considerando a transmissão como sendo de interesse da comunidade! Felizmente, não houve a transmissão da noite de núpcias.


Complementação redendora


A TVE do Rio de Janeiro foi a maior beneficiada com a introdução da retransmissão mista, pois, por ser a única emissora a transmitir por satélite, atraiu um número maior de interessados, em todo o país. Não havia, entretanto, nenhum documento legal que estabelecesse os critérios para a outorga de retransmissoras educativas.


Assim, em 1991, por iniciativa da TVE do Rio de Janeiro, foi baixada a Portaria Interministerial MEC/Ministério da Infra-Estrutura (nome do Ministério das Comunicações àquela época) Nº 236, de 29/10/1991, disciplinando a chamada retransmissão mista.


Esta providência, entretanto, não revelou ser tão eficaz quanto se imaginava. Continuaram ocorrendo excessos e as pequenas emissoras comerciais interioranas queixavam-se da concorrência desleal (inserção de publicidade) praticada por algumas das retransmissoras mistas. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT iniciou uma campanha visando à revogação dos dispositivos legais que permitiam a existência dessas retransmissoras. Foram apresentadas várias propostas, mas todas foram sistematicamente recusadas pelo Ministério das Comunicações.


Finalmente, em 1998, as gestões da ABERT se tornaram vitoriosas. O governo baixou o Decreto Nº 2.593, de 15/05/1998, que, mais uma vez, alterava o Regulamento dos Serviços de Retransmissão de Repetição de Televisão. E esse decreto, além de extinguir a possibilidade da inserção de programação local por parte das retransmissoras educativas, trouxe uma novidade que provocaria profundas alterações na área da televisão educativa. Com o objetivo de eliminar os excessos verificados e o mau uso dos horários utilizados (cerca de duas horas diárias) pelas inserções, esse Decreto abriu a possibilidade dessas retransmissoras se transformarem em geradoras e, em conseqüência, adquirirem o direito de cometer os mesmos erros durante 24 horas por dia !!!


Com efeito, no Capítulo X do Decreto, dedicado às Disposições Transitórias pode se verificar no art. 39: ‘As entidades que atualmente executam o Serviço de RTV com inserções publicitárias ou de programação, interessadas em sua continuidade, deverão solicitar ao Ministério das Comunicações a transferência dos canais que utilizam do Plano Básico de Distribuição de Canais de Retransmissão de Televisão para o correspondente Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão.’


E ainda, no parágrafo 2º desse mesmo artigo, a complementação redentora: ‘Efetivada a transferência de canais de retransmissão de sinais provenientes de estação geradora de televisão educativa, o Ministério das Comunicações analisará as solicitações recebidas para outorga de concessão para execução do Serviço de Radiodifusão de Sons e Imagens Educativa.’


O Decreto N° 2.593 foi, posteriormente, regulamentado pela Portaria MC (Ministério das Comunicações) N° 169, de 27 de maio de 1998.


Poucos beneficiários


O resultado desta abertura pode ser facilmente comprovado: neste momento, existem 178 emissoras geradoras de televisão educativa, conforme consta da Listagem de Geradoras do Ministério das Comunicações. Um número absurdo se for levado em consideração o fato de que essas emissoras não podem veicular publicidade nem propaganda e que a grande maioria pertence a entidades privadas que não recebem verbas governamentais de qualquer espécie. Um sub-resultado é a constatação de que várias dessas emissoras foram vendidas para as seitas religiosas que hoje ocupam vastos espaços do espectro televisivo nacional.


Se a intenção do legislador foi a de provocar a implementação da regionalização da produção, conforme preceitua a Constituição Brasileira em seu art. 221: ‘A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’, o resultado não foi o esperado, pois pelo fato dessas emissoras não terem fontes de financiamento, quase todas continuaram retransmitindo a programação das geradoras às quais estavam vinculadas quando ainda eram retransmissoras, por absoluta falta de recursos para produzir a própria programação.


Toda esta história teve início em 1988, razão pela qual é preciso retornar àquela época para poder continuar analisando os problemas da legislação.


Em 1990, a Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa (FUNTEVÊ) passou a denominar-se Fundação Roquette Pinto – FRP, em conseqüência do disposto na Lei Nº 8.029, de 12/04/1990.


O SINRED cumpriu o seu papel de órgão aglutinador e, enquanto a TVE/RJ foi a única emissora educativa a ter acesso ao satélite (introduzido em 1987), ela coordenava operacionalmente o Sistema e gerava toda a programação conjunta veiculada, incluindo diversos programas produzidos pelas demais emissoras.


No entanto, a partir de 1993, a FRP e suas emissoras, a TVE/RJ e a Rádio MEC, enfrentaram uma séria crise que resultou no declínio de sua programação, e numa diminuição significativa do apoio financeiro e técnico que prestavam às co-irmãs. Na mesma época, a TV Cultura da Fundação Padre Anchieta, de São Paulo passou a ter acesso ao satélite, provocando uma imediata divisão no frágil equilíbrio que sustentava o Sistema (área da televisão), pois sua programação, àquela época, era de qualidade indiscutivelmente superior. Essa divisão foi caracterizada pelo fato de algumas emissoras terem passado a retransmitir a programação da TV Cultura,


Houve uma tentativa, em julho de 1994, de retomada, pela FRP, da coordenação do Sistema com a emissão da Portaria MEC nº 1014, de 08/07/1994, que reformulava o SINRED e da Portaria MEC nº 1015, da mesma data, que criava o PROSINRED, um Programa destinado a reequipar todas as emissoras educativas de rádio e de televisão, com recursos provenientes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e que chegou a ser posto em prática, beneficiando umas poucas emissoras que haviam submetido seus projetos à FRP.


Estranho dispositivo


Em 1995, a FRP foi transferida do Ministério da Educação para a Secretaria de Estado de Comunicação de Governo- SECOM. A partir deste fato não houve mais, por parte da FRP, qualquer tentativa de retomada da coordenação do SINRED que, na prática, passou a ter duas emissoras de televisão (TVE/RJ e TV Cultura/SP) gerando suas programações para as demais. Além disso, a FRP, por não estar mais vinculada ao MEC, deixou de emitir os Pareceres necessários para a outorga de concessão dos canais educativos. O próprio MEC abriu mão de sua prerrogativa e desta forma, todo o processo de concessão passou à responsabilidade do Ministério das Comunicações, fato que permanece vigorando até hoje.


Foi também em 1995, que o Governo Federal aprovou a Lei N° 8.977, de 06/01/1995, que instituiu o Serviço de TV a Cabo. A Lei do Cabo foi regulamentada pelo Decreto n°2206, de 14//04/1997, que, por sua vez, foi detalhado na Norma N° 13/96 – REV97.


A Lei do Cabo, em seu art. 23, determinou que as operadoras do Serviço de TV a Cabo tornassem disponíveis canais básicos de utilização gratuita para várias destinações, entre as quais um canal universitário e um canal comunitário. Assim, qualquer município brasileiro servido por uma operadora de TV a Cabo poderia ter uma TV Universitária e uma TV Comunitária.


No ano seguinte, 1996, o SINRED foi informalmente desativado, ao mesmo tempo em que a TV Cultura de São Paulo fazia com que sua programação viesse a substituir a da TVE/RJ. Este fato, aliado à perda do poder político causado pela transferência da FRP (do MEC para a SECOM), provocou uma diminuição da área de influência da TVE/RJ e o fortalecimento e a ampliação da abrangência do sinal da TV Cultura/SP, além de extinguir, totalmente, o subsistema de rádio. Na verdade, o sistema de televisão deixou de ser coordenado por um órgão federal, uma das razões pela qual o governo atual pretende implantar uma nova rede pública.


Em 1997, iniciaram-se as negociações para a extinção da Fundação Roquette Pinto e a sua substituição por uma entidade que seria criada sob a forma de Organização Social – OS, uma nova figura de razão social. O resultado foi a criação, em 1998, da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP, que teve, como respaldo jurídico, a Lei Nº 9.637, de 15/05/1998, que dispunha sobre a qualificação de entidades como Organizações Sociais e que extinguia, de fato, a Fundação Roquette Pinto.


Assim, a TVE/RJ, uma unidade organizacional da ACERP, passou a ser considerada uma emissora privada que, por intermédio de um Contrato de Gestão assinado com o Governo Federal, se obrigava a prestar serviços públicos e que, por um Convênio assinado em 30/04/1998 com a Radiobrás, podia utilizar os canais federais (do Rio de Janeiro e de São Luís) para a transmissão de sua programação.


Como pode ser verificado, o texto acima se refere a canais federais. Isto porque, em 1986, a então FUNTEVÊ incorporou, por determinação do Governo Federal, a TVE do Maranhão, que continua, até hoje, incorporada à ACERP.


Retornando à ordem cronológica, ainda em 1997, por iniciativa da TV Cultura de São Paulo, foi criada a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais – ABEPEC com o intuito de ocupar o espaço vazio deixado pela extinção do SINRED. A ABEPEC, cujo Estatuto atual foi aprovado em 03/05/2002,congrega 19 das 24 emissoras educativas localizadas nas capitais dos Estados. Por decisão consensual, todas as emissoras integrantes transmitem uma programação conjunta em determinados horários durante a semana. A esses horários de transmissão da programação conjunta foi dado o nome de Rede Pública de Televisão.


Em 1998, foi promulgada a Lei Nº 9.612, de 19/02/1998, instituindo o Serviço de Radiodifusão Comunitária, restrito à radiodifusão sonora em FM. Segundo essa lei, as rádios comunitárias deveriam operar em baixa potência e cobertura limitada e só poderiam ser outorgadas a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço. Este texto não pretende se aprofundar neste assunto, porque seu enfoque principal é a televisão.


Ainda em 1998, como conseqüência da privatização da ACERP, o Governo Federal baixou o Decreto s/n°, de 15/04/1998, autorizando a Radiobrás a assumir a exploração dos canais de TV do Rio de Janeiro e de São Luís. Um dispositivo legal muito estranho, por não estar numerado e por ser absolutamente desnecessário, uma vez que a Lei que criava a Radiobrás já garantia essa assunção. Mais um detalhe para reforçar o adjetivo ‘caótica’ utilizado no subtítulo do texto.


Emissoras móveis


A chamada Lei das Organizações Sociais, a exemplo do que já ocorrera com as Leis Sarney e Rouanet, abriu um novo precedente no que tange à veiculação de publicidade e ao patrocínio de programas, pois estabelecia nas Disposições Finais e Transitórias, art. 19: ‘As entidades que absorverem atividades de rádio e televisão educativa poderão receber recursos e veicular publicidade institucional de entidades de direito público ou privado, a título de apoio cultural, admitindo-se o patrocínio de programas, eventos e projetos, vedada a veiculação remunerada de anúncios e outras práticas que configurem comercialização de seus intervalos’.


Esse artigo resultou na veiculação de mensagens de apoio cultural por parte de várias emissoras de TV educativa que se valeram da analogia, pois se as emissoras de TV que tivessem a razão social de OS podiam fazê-lo, as demais também poderiam, mesmo que suas razões sociais fossem diferentes. Mas essa analogia não foi aceita nem pelo Ministério das Comunicações, nem pela Anatel, embora, como já explicado anteriormente, houvesse outra analogia que não só foi amplamente utilizada como chegou a ter status de lei (rádios atingidas pelo dispositivo que se referia exclusivamente às televisões).


Com o intuito de disciplinar a questão da veiculação de publicidade por parte das emissoras educativas, foi baixado, pelo governo atual, o Decreto N°5396, de 21/03/2005, que procurou regulamentar o já citado art. 19 da Lei N° 9.637. Na verdade, essa sendo a única intervenção importante do atual governo, no que diz respeito à legislação da radiodifusão educativa.


Hoje, as emissoras de televisão educativa estão veiculando mensagens de apoio cultural e assim captando recursos fundamentais para sua subsistência, principalmente as emissoras privadas que não recebem qualquer tipo de apoio financeiro governamental. E, além disso, há umas poucas emissoras que estão veiculando comerciais remunerados apesar das restrições legais.


Enfim, nesses últimos anos, não surgiram instrumentos legais que piorassem a situação, mas também nenhuma tentativa foi feita para melhorar o quadro atual.


Há uma esperança permanente de que o Código Brasileiro de Telecomunicações venha a ser substituído por uma legislação moderna e adaptada à nova realidade tecnológica do país, principalmente agora que a televisão está o limiar de sua mais profunda modificação, qual seja, a da migração do sistema analógico para o digital.


Ao dispositivo legal que fará essa substituição foi dado o nome de Lei Geral de Comunicação de Massas que não tratará mais das telecomunicações que já têm sua lei própria. Essa Lei Geral está sendo discutida desde 1995 e, dificilmente, ficará pronta em um curto espaço de tempo, isto porque há muitos interesses envolvidos e, para piorar a situação, há muitos parlamentares que possuem emissoras de radiodifusão.


Com o intuito de esclarecer a confusão, mas sem entrar nos aspectos conceituais e filosóficos, tentar-se-á, à luz de tudo que aqui foi explicitado, definir os termos que classificam as emissoras de televisão que não são comerciais e que, portanto, não tem fins lucrativos:


** televisão educativa – é o único termo que consta de todos os instrumentos legais e abarca todos os outros tipos de emissoras, exceto as estatais e as comunitárias;


** televisão cultural – denominação adotada por algumas emissoras educativas que têm seus objetivos mais voltados para área cultural. Algumas emissoras nasceram com essa denominação, enquanto outras a adotaram mais tarde, principalmente por considerarem o termo ‘educativa’ um estigma, sinônimo de chatice e falta de criatividade;


** televisão pública – este é o termo mais difícil de ser explicado e é o que está mais em uso. Não se trata de uma contraposição ao termo ‘privada’ pois algumas televisões públicas são privadas. A classificação está ligada ao modo de organização da emissora, caso seja administrada por um Conselho que tenha em sua composição representantes dos diversos segmentos da sociedade, coisa que na prática dificilmente ocorre. Pouquíssimas emissoras podem, realmente, usar essa denominação;


** televisão estatal – termo utilizado para definir as emissoras comerciais que pertencem a governos, das três esferas (federal, estadual e municipal). Algumas emissoras educativas, embora veiculem uma programação diversificada, podem ser consideradas estatais por obedecerem integralmente aos governos aos quais estão vinculadas;


** televisão universitária – termo que designa as emissoras pertencentes a universidades (obviamente). Essas emissoras podem ser de dois tipos: as que transmitem em sinal aberto e as que transmitem (a grande maioria) no sistema de TV a cabo;


** televisão comunitária – há alguns anos atrás foi a autodenominação utilizada pelas retransmissoras mistas, aquelas que podiam inserir programação local. Hoje, o termo é usado, exclusivamente, para designar as emissoras criadas em função da Lei da Cabodifusão.


Existe, ainda, uma outra categoria de emissoras não comerciais, cujas características não foram abordadas neste texto por não haver qualquer tipo de legislação a elas relacionada. Trata-se das assim chamadas TVs de Rua. São emissoras móveis que transmitem sua programação em praças, em parques, em recintos cedidos pelas comunidades, etc. No Brasil, as experiências mais significativas de TV de Rua foram: TV Viva de Recife/Olinda/PE, TV Mocoronga de Santarém/PA, TV Liceu de Salvador/BA, TV Sala de Espera de Belo Horizonte/MG, TV dos Trabalhadores de São Bernardo do Campo/SP, TV Maxambomba do Rio de Janeiro/RJ, Bem TV de Niterói/RJ, TV Olho, TV Tagarela, TV Égua-92 e TV Pinel, todas do Rio de Janeiro/RJ, TV Mangue de Recife/PE, TV Memória Popular de Natal/RN e a TV Mandacaru de Teresina/PI.


Análise profunda


Ressalva final importante: há alguns dispositivos legais indiretamente ligados à área da radiodifusão educativa, mas que não mereceram ser abordados neste texto porque sua aplicação está restrita às televisões comerciais. Por exemplo, a Portaria Interministerial MEC/Minicom Nº 568, de 21/10/1980, substituiu a Portaria MEC/Minicom Nº 408, de 29/07/1970 e ambas dispunham sobre a regulamentação do tempo obrigatório e gratuito que as emissoras comerciais deviam destinar à transmissão de programas educacionais. Segundo a Portaria Nº 568, a coordenação dessa atividade caberia à Secretaria de Aplicações Tecnológicas – SEAT do MEC e as emissoras educativas deveriam assumir a produção de programas para as TVs comerciais que não tivessem programação própria para cumprir os ditames legais.


Essa Portaria foi suspensa em 1991 por intermédio de um convênio entre o MEC e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT. Tal convênio foi renovado algumas vezes e sua última versão pode ser analisada no documento Convênio Nº 01/03, de 07/05/2003. Sua suspensão representou uma perda relevante para a população brasileira pois esse espaço obrigatoriamente cedido pelas TVs (e também pelas Rádios) comerciais foi ocupado por importante programas, tais como, Projeto Minerva (Rádio), Telenovela Didática ‘João da Silva’, Telecurso do 2º Grau, Telecurso do 1º Grau, entre outros.


Finalmente, como tratar a questão da nova Rede Pública Nacional proposta pelo atual governo?


No que tange ao assunto predominante deste texto, não há muito a ser analisado pois não existe, ainda, qualquer dispositivo legal que diga respeito a rádiodifusão educativa digital. A rede proposta só se transformará em realidade quando a televisão digital iniciar a sua implantação no país, pois os canais a serem por ela ocupados serão canais digitais. A proposta se refere a quatro canais públicos: um do próprio governo, um destinado à educação, um destinado à cultura e um último destinado à cidadania (seria um canal comunitário).


Não resta qualquer dúvida de que a radiodifusão educativa está diante de uma oportunidade impar para aparar todas as arestas legais que impedem o seu pleno desenvolvimento. Para tanto, será importante participar de todas as etapas (elaboração, discussão e aprovação) da nova Lei Geral de Comunicação de Massas que deverá reger, em breve, as atividades dessa área.


Importante observar, também, que a problemática não está restrita à questão da legislação. Há inúmeros outros aspectos que também devem merecer uma análise profunda para garantir mudanças positivas nesse setor tão relevante para população brasileira.

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Assessor de Coordenação de Rede da TVE Brasil; www.radiodifusaoeducativa.
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