Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A uberização da TV Globo sinaliza uma nova realidade no jornalismo

Imagem: reprodução

A pandemia do coronavírus acelerou o ritmo da uberização do jornalismo e da teledramaturgia da TV Globo com a transformação dos contratos de trabalho de repórteres, editores, produtores, atores, atrizes, diretores e roteiristas. O novo modelo segue o padrão implantado pelo sistema Uber para motoristas de aplicativos e que, a cada dia, ganha mais adeptos em diferentes áreas da nova economia digital.

Ao não renovar contratos de profissionais mais antigos, e até mesmo alguns que ainda estão no início da carreira, o jornalismo global aposta no modelo em que a emissora se livra da maioria dos custos e riscos impostos pela legislação trabalhista atual. Ao mesmo tempo, a empresa aposta na pejotização de repórteres, editores e produtores, ou seja, a transformação dos profissionais em pessoas jurídicas (PJ), por meio da criação de empresas individuais.

Trata-se de uma mudança profunda nas relações entre patrões e empregados. Mas a transformação vai bem mais fundo do que a mera troca de status jurídico na relação entre compradores e fornecedores de serviços jornalísticos. O que a uberização começa a desenhar é uma estrutura de produção jornalística marcada pela segmentação, terceirização/ compartilhamento e laissez faire (vale tudo) em matéria de remuneração de produtos e serviços. A verticalização corporativa e sindical perde gradualmente toda a força como fator regulador da atividade jornalística.

A segmentação em nichos informativos

A segmentação torna-se um imperativo tanto para os demitidos pelo processo de uberização do jornalismo como para quem está entrando na atividade. O fim das grandes redações e equipes de correspondentes contratados obriga a que cada jornalista busque um nicho informativo, onde possa desenvolver ao máximo seus conhecimentos especializados e sua rede de contatos para conseguir enfrentar a concorrência de outros profissionais na mesma área.

A especialização em nichos permite ao jornalista escolher temas com os quais se sente mais identificado, sem se submeter à imposição da estratégia noticiosa de uma empresa. Mas a liberdade tem um preço que vai depender de três fatores: a batalha pela visibilidade pública, volatilidade da agenda pública e a busca da sustentabilidade financeira. É claro que não há fórmulas gerais, mas o que ocorre atualmente com os influenciadores digitais pode sinalizar algumas pedras no caminho de quem exerce a atividade noticiosa na era digital.

A preocupação em ser conhecido está diretamente ligada à necessidade de buscar clientes, o que leva o repórter, programador, editor, comentarista, fotógrafo ou cinegrafista a ter que fazer marketing pessoal, algo que a maioria dos profissionais não sabe ou não se sente à vontade. A entrada na caótica arena da superoferta de conteúdos jornalísticos tem como efeito colateral a possibilidade de desinformação e descontextualização de notícias por impossibilidade material de um único repórter analisar todos os lados de um mesmo dado, fato ou evento.

A volatilidade da agenda pública inevitavelmente fará com que o nicho informativo escolhido pelo profissional passe por altos e baixos em matéria de interesse tanto dos conglomerados da imprensa como dos consumidores de notícias. A oscilação entre momentos de alta ou baixa procura de determinadas informações tem reflexos diretos no orçamento financeiro de cada jornalista, que além de produzir notícias, fazer marketing pessoal, terá também que ser o seu próprio gerente.

Terceirização e compartilhamento

As experiências já em curso em países mais adiantados em matéria de uberização do jornalismo indicam que os profissionais acabam se agrupando para compartilhar recursos materiais, intelectuais e financeiros, sem falar no marketing e na gerência administrativa. Esta colaboração ocorre de duas formas: pela troca de informações ou pela terceirização de tarefas ou equipamentos. No primeiro caso, trata-se do compartilhamento de dados, experiências e contatos. No segundo caso, existe a terceirização através da contratação de serviços e produtos numa relação comercial entre organizações diferentes.

O compartilhamento e terceirização já são praticados desde o nível hiperlocal como é o caso do projeto Alma Preta, em comunidades da periferia de São Paulo, até a colaboração transnacional, onde o exemplo mais bem sucedido é o do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, reunindo 190 profissionais de 65 países e responsável por investigações sobre negócios escusos em paraísos fiscais, como os recentes escândalos dos Panamá Papers e Pandora Papers.

Os efeitos mais importantes do compartilhamento e da terceirização ocorrem no terreno noticioso, com o surgimento de coletivos online e cooperativas de profissionais autônomos especializadas na prestação de serviços integrados ao processo de produção de notícias, como checagem de dados, assessoria técnica em softwares e hardwares, tutoria na participação em licitações públicas ou privadas, só para citar os casos mais comuns.

O vale tudo financeiro

A parte financeira da uberização jornalística é a mais polêmica e também a que registra a superexploração do trabalho dos profissionais. O elevado índice de desemprego entre jornalistas obrigou-os a aceitar pagamentos muito abaixo dos padrões profissionais vigentes até agora.

A ausência de novas regras sobre pagamento de conteúdos jornalísticos num regime de “cada um por si” na produção de notícias, reportagens e entrevistas faz com que a remuneração seja negociada caso a caso. Isto coloca em desvantagem os profissionais pouco conhecidos e os que estão entrando no mercado da informação.

O novo modelo de relação profissional instaura um “vale tudo” salarial onde a subvalorização da atividade jornalística pode atingir até 30% do valor médio obtido pelo mesmo trabalho antes da uberização na profissão. Nos Estados Unidos, a reação dos jornalistas veio através de uma campanha para a sindicalização tanto nas redações como entre os profissionais autônomos, como mostrou um estudo do respeitado Nieman Reports, da Universidade Harvard.

A uberização não é boa e nem má. Ela é parte do processo de transição de modelos de relacionamento entre as partes envolvidas na produção jornalística. Ainda é cedo para dizer que se o modelo Uber vai prevalecer ou não. Provavelmente não será o que está sendo aplicado agora, mas o certo é que o sistema de carteira assinada deixará se ser o padrão geral porque a volatilidade da produção jornalística na era digital se tornou incompatível com estruturas rígidas

Todas estas mudanças em curso no jornalismo têm como pano de fundo uma transformação radical provocada pela digitalização e que afeta toda a sociedade contemporânea. A inovação acelerada na produção de conhecimentos, bens e serviços, movida por processos digitais, intensifica a obsoletização fazendo com que o uso se torne mais atrativo do que a propriedade, como já acontece em centenas de setores econômicos, como aviação, computação, indústria automobilística e até mesmo no setor imobiliário, através do sistema de leasing. Nestas condições, usar free lancers jornalísticos ocasionais tornou-se financeiramente mais interessante para donos de empresas online ou offline do que contratar profissionais.

A uberização é o primeiro sintoma desta nova cultura baseada na digitalização e automação, onde a estabilidade e segurança do que é fixo perdem espaço para a ideia do fluido e incerto. É o processo natural e inevitável que ocorre sempre que uma mudança tecnológica quebra os paradigmas existentes, criando incertezas que precisam ser resolvidas por meio de inovações e criatividade. O desafio do jornalismo será desenvolver uma nova cultura profissional em que as incertezas inerentes a um sistema inovador, como a uberização do trabalho jornalístico, estejam vinculadas à valorização monetária da produção independente e autônoma de notícias.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.