Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A agonia da empresa jornalística familiar

A venda do jornal The Washington Post para o empresário Jeff Bezos, anunciada na segunda-feira (5/8), além de carregar uma simbologia extrema sobre as mudanças radicais que vêm ocorrendo há duas décadas no mercado de comunicação, é mais um duro golpe contra a instituição do jornal controlado por famílias, que foi dominante na imprensa americana no século passado e teve forte influência na brasileira.

Cem anos atrás, quase todos os jornais dos EUA pertenciam a famílias. Em 2013, dos 1.500 diários existentes, cerca de 200 são familiares. Agora, dos principais diários, só o New York Times ainda é controlado por uma família, a Sulzberger. O Post deixa de pertencer à família Graham, como, antes, os Bancroft haviam vendido o Wall Street Journal, os Chandler perderam o controle do Los Angeles Times, entre outros que deixaram o modelo.

Quando essa tendência se intensificou, no primeiro ano deste século, Katharine Graham, a matriarca do Post, a lamentou e disse: “Não acho que seja por acidente que os jornais conhecidos como os de melhor qualidade do país sejam, ou tenham sido até recentemente, controlados por famílias”.

Tampouco foi por mera coincidência que a venda dos jornais de família se tornou quase corriqueira a partir de 2000. Nos anos 1990, a internet se disseminou e começou a ficar claro que o tal “modelo de negócios” para os veículos jornalísticos impressos estava à beira de sofrer um xeque-mate.

Excesso de confiança

O debate sobre as virtudes e vícios do modelo de propriedade familiar sempre foi pontuado por ingenuidade, desconhecimento, hipocrisia ou desonestidade, em diversos graus, tanto por parte dos que se opunham a ele quando dos que o exaltavam.

Quase tudo, evidentemente, sempre dependeu de que família ou de que empresa controlava que jornal, ou de que geração familiar ou de que executivo de empresa tomava as decisões em que veículo. Obviamente, muito sempre se dependeu da conjuntura econômica.

Por mais que os valores de uma família pudessem ser sólidos, ninguém jamais foi capaz de garantir que eles prevaleceriam em qualquer circunstância. Por exemplo, o Los Angeles Times passou por fases de enorme qualidade e exemplar independência editorial sob os Chandler, mas também sob eles foi um jornal ruim e eticamente condenável.

É difícil afirmar o que teria ocorrido se o Washington Post não fosse um jornal familiar na década de 1970, quando Katharine Graham resolveu dar toda força a Ben Bradlee e manter a investigação do caso Watergate apesar da formidável pressão que o governo de Richard Nixon colocou sobre ela para convencê-la a parar.

Será que um executivo de uma corporação, passível de demissão e beneficiário de bônus, teria afrontado Nixon, que explicitamente ameaçou cassar concessões de TV do grupo Washington Post que eram muito mais lucrativas do que o jornal em si? Quem defende o modelo familiar acha que não, que só a dona, que não devia satisfações a acionistas, seria capaz de tanta coragem.

Pode ser. Mas será que um executivo arriscaria fazer o que a neta de Katharine Graham fez em 2009, quando, aflita com os números cada vez mais desfavoráveis, considerou razoável promover jantares em sua casa para os quais convidava seus principais editores e repórteres e vendia assentos a empresários, políticos e lobistas (por quantias que variavam de 25 mil a 250 mil dólares conforme a proximidade da cadeira do comprador em relação à do jornalista com quem ele quisesse conversar mais intensamente)?

Não ter que prestar contas a ninguém pode ser bênção ou maldição, dependendo do bom senso e do juízo de quem se encontra nessa posição – e esses atributos, feliz ou infelizmente, não se transmitem geneticamente. Sem dúvida, um jornal familiar pode tomar decisões de modo mais rápido e menos burocratizado do que um que tem de responder a acionistas, mas o que de fato importa é tomar as decisões certas.

No caso do Washington Post (e outros), diante do desafio da era digital as decisões tomadas foram erradas. Por excesso de confiança nos sucessos do passado ou por idiossincrasias pessoais ou qualquer outra razão, o fato é que o Post adotou apenas uma resposta para a lucratividade continuamente em baixa: cortar pessoal, cortar papel e aumentar o preço – fórmula que, apesar de se ter comprovada errônea por 20 anos, foi adotada até o fim dos Graham.

Proximidade com o presidente

Outro argumento frequentemente utilizado para louvar o modelo de propriedade familiar é o de que os jornais que o adotam têm mais identidade com a comunidade onde circulam e, por isso, a representam melhor.

O Washington Post, novamente neste quesito, é bastante emblemático. Embora tenha sido a partir dos anos 1960 um jornal de repercussão nacional, ele sempre foi basicamente um veículo local. No auge de seu prestígio, estava presente diariamente em mais de 80% dos domicílios da área metropolitana de Washington, após ter esmagado e tirado de circulação todos os rivais.

A família Graham levava tão a sério seu pertencimento a Washington que Don Graham, filho e sucessor de Katharine no comando do jornal, resolveu que antes de assumir suas responsabilidades na empresa deveria conhecer mais a região em que ela atuava, e durante um ano e meio trabalhou no Departamento de Polícia Metropolitana como patrulheiro, para ver de perto os problemas que seus leitores enfrentavam.

No entanto, desde o início da segunda metade do século 20, o fato de que o jornal era parte da comunidade a que servia nos EUA se transformava num mito: em 1950, 49% da circulação de jornais diários no país pertenciam a cadeias jornalísticas (empresas que controlavam diversos títulos em diversas cidades); em 1967, essa porcentagem passou para 63%.

Os jornais familiares, assim, já vinham enfrentando problemas sérios por muitas décadas. O jornal de maior circulação nos EUA há anos, por exemplo, é o USA Today, que pertence desde o lançamento à cadeia Gannett, operada por executivos contratados. Embora provavelmente o mais influente ainda seja o New York Times, ele também tem passado por crises econômicas e de credibilidade bastante graves neste século.

Mas nada afeta mais a imagem do modelo do jornal de família nos EUA do que a venda do Washington Post, ainda que Jeff Bezos o tenha adquirido como pessoa física, não pela Amazon, o que – para alguns analistas com visão otimista – indica que ele pretende preservar aspectos fundamentais do caráter do modelo em que o diário vem operando há décadas, ainda mais por ter mantido a neta de Katharine Graham como publisher.

Poucos jornais foram tão familiares como o Post nesses 80 anos em que foi controlado pelos Meyer-Graham, desde que, em junho de 1933, Eugene Meyer, pai de Katharine Graham, o comprou de Edward Beale McLean, quando estava praticamente falido.

Meyer era um homem muito rico, que entre setembro de 1930 e março de 1933 foi presidente do Federal Reserve (FED), o Banco Central dos EUA. No que pode ser considerada uma das vantagens do modelo familiar, Eugene Meyer não se incomodou em perder dinheiro com o Post durante quase 15 anos (mas deve ser lembrado que a Gannett também não se perturbou por ver o USA Today no vermelho por mais de cinco anos).

O jornal só começou a entrar nos eixos a partir de 1946, quando Meyer se tornou o primeiro presidente do Banco Mundial e passou a função de publisher para seu genro, Philip Graham. Graham parecia ter nascido para o jornalismo. Em Harvard, onde foi aluno brilhante na Faculdade de Direito, editou o a Harvard Law Review com grande sucesso.

À frente do Post, adquiriu concessões de rádios, superou os rivais da cidade com uma política agressiva de captação de classificados e comprou a revista Newsweek,que se tornou concorrente da Time com quase o mesmo nível da líder em repercussão e faturamento.

Mas muito de seu êxito como publisher se deu graças à sua amizade pessoal com John Kennedy e Lyndon Johnson e à sua desenvoltura política. (Muitos creditam a ele a composição da chapa Kennedy-Johnson para a eleição de 1960, apesar da oposição que Robert, irmão do presidente, fazia à inclusão de Johnson como candidato a vice.)

Cena constrangedora

No governo Kennedy, o Washington Post teve acesso privilegiado a informações, ganhou musculatura em temas políticos, foi favorecido por anunciantes que queriam estar de bem com o amigo de JFK. Graham, que sofria de bipolaridade aguda, suicidou-se em 3 de agosto de 1963, ou seja 50 anos antes de sua neta fechar negócio com Jeff Bezos.

A viúva Katharine, com 46 anos de idade, era conhecida apenas como uma socialite, nascida e criada em berço de ouro, anfitriã das melhores festas da capital dos EUA, comparáveis apenas às que a Casa Branca passou a oferecer depois de Jacqueline Bouvier ter se tornado a primeira-dama.

Para a surpresa de muitos, ela se entusiasmou pelo jornalismo e tirou o Post de sua condição de diário local para colocá-lo na Santíssima Trindade da imprensa americana, ao lado do New York Times e do Wall Street Journal. O grande divisor de águas foi, sem dúvida, sua escolha de Ben Bradlee para comandar a redação, em 1968.

Graham e Bradlee fizeram uma dupla perfeita, baseada em confiança e admiração recíprocas. Seu maior teste de força foi o caso Watergate, que ela comandou com grande coragem.

Na sua autobiografia, publicada em 1997 (na qual ela se revelou também uma grande escritora), Graham foi reservada e contida quanto a seu papel em Watergate. Ali, apenas reafirmou os princípios gerais que ela e Bradlee determinaram a seus repórteres na apuração dos fatos: qualquer informação vinda de fonte anônima tinha de ter pelo menos uma confirmação, nenhuma informação originada de outro veículo podia ser divulgada a não ser que fosse independentemente confirmada pelo próprio jornal, todos os textos antes de serem publicados tinham de ser lidos por pelo menos um editor sênior além do editor de nacional e do próprio Bradlee.

Os políticos que se tornaram amigos pessoais de Katharine eram do lado ideológico oposto ao de seu marido. Entre eles, Henry Kissinger, Ronald Reagan, Robert McNamara. Mas isso não parece ter influenciado a linha editorial do Post, que continuou basicamente alinhada à ala mais liberal do Partido Democrata.

Ela passou o comando do jornal a seu filho Donald em 1993, quando a internet começava a se universalizar e a mostrar como poderia ferir de morte os jornais impressos. A gestão do neto de Meyer não foi das mais felizes. Ele não só se mostrou incapaz de reagir eficazmente ao desafio digital, como ainda colocou o Post numa situação eticamente complicada ao obter do senador John Danforth que incluísse uma emenda na legislação sobre telefonia celular que claramente favorecia aos interesses de sua empresa, que estava entrando nesse tipo de negócios como forma de tentar escapar das agruras do jornalismo impresso.

O episódio constrangedor foi denunciado pelo ombudsman do jornal. Aliás, foi o Post que transformou essa posição em algo restrito a uns tantos pequenos diários numa instituição internacional ao criar o posto em 1970. É sintomático que neste ano de 2013 o Post tenha decidido extingui-lo.

Intervenção arrebatadora

Em 2008, Katharine Weymouth, sobrinha de Don e neta de Katharine Graham, assumiu a posição de publisher do Post. O jornal já estava irreconhecível para quem o lera nos anos de glória. Fino, sem cadernos, quase sem classificados, poucos anúncios, triste.

Provavelmente, Weymouth nada poderia ter feito para reanimá-lo. Mas seu comportamento mostrava que ela era pouco preparada para a tarefa, de todo modo. No encontro mundial de ombudsmans em maio de 2009, em Washington, ela participou de uma mesa sobre por que um jornal deveria ter ombudsman. Sua fala foi pouco inspiradora.

Na plateia, estava Ben Bradlee, a quem alguém dirigiu uma pergunta: por que ele, Bradlee, resolveu criar o cargo no Post. Sua resposta foi apaixonada e arrebatadora. Mais e mais perguntas foram feitas a ele, e Weymouth, à mesa, não disfarçou o mal estar e várias vezes, sem sucesso, tentou assumir a condição de estrela da noite.

Bradlee estava com 88 anos. Quando o debate terminou, quase todos os presentes se dirigiram a ele para uma conversa final. Weymouth ficou quase sozinha à mesa. Ele era a personificação do Post heroico. Ela, do Post atual.

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Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista