Foi assim que aconteceu. No final do ano passado, chegou ao apartamento em que moro, em São Paulo, um aparador, desses que a gente põe ao lado da mesa de jantar. Não estou seguro quanto à palavra, aparador. Talvez o nome seja buffet. Além de oferecer apoio para travessas durante uma refeição, o móvel é praticamente um armário, com portas para guardarmos pratos, copos e bebidas, além de algumas gavetas, úteis para toalhas de mesa, talheres etc. Chegou em casa por volta de outubro de 2007, mais ou menos. Contratei um lustrador profissional para limpá-lo, recuperar o verniz e dar um jeito nas dobradiças, que estavam enferrujadas. Eu tinha comprado um aparador com pés de ferro, o corpo em madeira clara, bonito, mas um tanto derrubado. Era uma peça dos anos 40.
Ao retirar as gavetas, o lustrador encontrou uma folha dupla de jornal antigo. Eram quatro páginas do Diário Popular, de São Paulo, com data do dia 2 de julho de 1947. Já estavam bastante amareladas, enrijecidas e quebradiças, ressecadas a ponto de esfarelar-se, mas sem sinal de traças. Era uma folha defunta, mas intacta, da seção de classificados. Manuseei com cuidado aquela relíquia do jornalismo pátrio. Desfiz as dobras com movimentos delicados para não estragá-lo ainda mais.
Um anúncio logo me chamou a atenção.
‘EMPREGADA: [o título vinha todo em caixa alta].
Branca, precisa-se p/ cozinhar e lavar, não arruma, durma no emprego. Exigem-se referências e documentos. Paga-se bom ordenado. Rua Conselheiro Crispiniano, n º 29, 9º, apt. 92. Falar com Dona Helena.’
Guardei meu pequeno tesouro, sem saber que utilidade ele poderia ter. Foi então que, dias depois, Adauto Novaes me telefonou para falar do ciclo ‘Vida Vício Virtude’ que ele começava a preparar. Ele me convidou para fazer uma das conferências. O meu tema seria a intolerância. Foi aí que entendi os propósitos secretos daquele jornal que chegou ao meu endereço com 60 anos e alguns meses de atraso. Aquele velho anúncio era um registro de intolerância racial – e, ao estar solenemente publicado no Diário Popular, era também um registro da tolerância com que a sociedade brinda sua própria intolerância, fazendo parecer que ela não é tão intolerante assim.
A Dona Helena, a que devia ser procurada pelas candidatas ao emprego, não queria saber de domésticas que não tivessem a pele branca. Intolerância. Ao mesmo tempo, não hesitou em mandar pôr isso no jornal. Tinha segurança de que sua intolerância contaria com a tolerância dos contemporâneos. Nos anos quarenta, aquele jornal a autorizava a publicar seu veto às candidatas negras. O Brasil já não era um país escravagista, mas ainda admitia, no jornal, critérios explicitamente discriminatórios para a contratação de empregados.
Já pensando na palestra que eu teria que preparar, lembrei-me de que uma das faces da intolerância repousa justamente nessa mentalidade social que autoriza a patroa provavelmente branca a acreditar que provavelmente não era racista porque provavelmente não quisesse eliminar os seres humanos de pele escura, mas apenas quer manter uma distância segura de todos eles. ‘Nada contra ninguém’, a Dona Helena diria de si, com sobrancelhas arqueadas, ‘mas os negros lá e eu aqui’. O que ela não queria era ‘se misturar’. A intolerância pode bem ser assim mesmo: uma resignação distanciada, um eles-lá-e-eu-aqui disfarçado de tolerância de cara fechada.
Quando fui enfim fazer a conferência, no início de maio 2008, comecei minha fala mostrando aos presentes a cópia daquele Diário Popular de 1947.
Não há imagem mais fixa que uma letra impressa no papel
Claro que esse anúncio classificado, aqui reproduzido como imagem, é um retrato de seu tempo. Ele é um retrato da mentalidade de uma era. Não é uma fotografia. Tampouco é uma caricatura, um bico de pena – como se usava naqueles anos 40. Mesmo assim, como letra impressa, ‘letra de fôrma’, retrata os valores e os limites da tolerância daquela época.
Aquele era um país, ou, melhor, aquela era uma São Paulo de Donas Helenas intolerantes em matéria da cor da pele de suas empregadas. Ao mesmo tempo, era uma cidade tolerante com a sua intolerância racial. Quem me garante isso? Quem me garante isso é a letra. Sim, a letra. A letra impressa. Leio aquele anúncio e sua letra me assegura: aqui temos racismo e aqui toleramos o racismo. A letra impressa é uma instância do ordenamento simbólico. Eu diria que a instância máxima, acima da qual não cabe recurso algum. Eu paro diante daquele velho fragmento de um diário e digo: racismo.
Em contrapartida, admito a possibilidade de que, ao fazer uma leitura tão categórica, eu possa incorrer, inadvertidamente, numa generalização temerária. Sim, pode ser que a minha leitura traga distorções de que não me dou conta. Claro que outros poderão olhar para o mesmo anúncio e decretar: não, isto não é racismo, mas um resquício de racismo já em extinção; isto aqui é um estágio na evolução da cultura brasileira para o não-racismo. Questão de perspectiva? Talvez, mas não apenas isso. A letra, posta como instância, depende do olhar do sujeito, por certo, mas ela própria determina o lugar em que é vista e, assim, determina seu sentido.
‘Nós designamos por letra esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado à linguagem’, diz Jacques Lacan em A instância da Letra no Inconsciente (‘Escritos’, São Paulo: Perspectiva, 4a. Edição, 1996, p. 225). Suporte material, penso eu, é o que me traz esse Diário Popular de seis décadas atrás, bem aqui na minha frente. É ele o discurso feito de letras, mas, aos meus olhos, ele se põe como letra em si, ou, com mais ênfase, ele se põe como a instância da letra que já foi incontestável e que agora, depois de tantos anos, mal se agüenta. Eis aqui a instância da letra a ponto de esfarelar-se. A letra que compõe a palavra ‘branca’, agora envelhecida, escancara para mim o que não terá ficado tão evidente para os leitores daquele tempo. O lugar da letra depende, portanto, da perspectiva do sujeito que olha para ela – e simultaneamente depende do lugar sobre o qual ela se fixou, e esse lugar é também um tempo. É essa palavra, a palavra ‘branca’, na velha folha de jornal, que diz para mim: aqui houve racismo e houve tolerância com o racismo.
Outra vez, porém, vem a dúvida. Será que estou autorizado a ler aquela letra do passado atribuindo a ela cargas valorativas de que só disponho hoje? Não haveria nessa leitura um anacronismo? Será que, por estar deslocada no tempo, aquela letra faz parecer violento algo que, em seu período original, poderia indicar apenas um gesto preventivo contra o exercício mais explícito de racismo, ou seja, um gesto de cortesia? Explico-me. Naquele tempo, desconvidar por antecipação uma pretendente negra talvez fosse mais respeitoso do que rejeitá-la pelo mesmo motivo no instante em que ela se apresentasse. Enfim, será que o que vejo hoje como signo do racismo não poderia ter sido visto, há sessenta anos, como tentativa de superação do racismo?
Por que esse jornal demorou tanto tempo a chegar ao seu leitor?
Aquelas páginas de Diário Popular jornal foram entregues em minha casa com um atraso de sessenta anos e alguns meses e, por isso, não consegue comigo uma comunicação propriamente jornalística. Entre a data em que aquela edição foi impressa e a data em que ela chegou ao seu leitor – que sou eu – transcorreram mais dias do que os admissíveis para que a comunicação jornalística se processasse. Para mim, a comunicação jornalística está morta. Não acontecerá. Eu não posso mais responder àqueles anúncios. Não posso mais dialogar com eles. O tempo no qual eles existiram se desfez.
Ainda assim, outra comunicação se faz, uma comunicação diferente, para a qual já não posso dar respostas. Estou em comunicação com um outro tempo, uma outra cidade, um outro mundo. Por isso, posso ver com mais facilidade as fissuras no manto que mantinha, naqueles anos 40, as aparências dos bons modos. O lapso de tempo, tão expandido, gera o lapso lingüístico e, por trás dele, o lapso do sentido pelo qual pressinto o vulto esquivo do inconsciente – o meu e o de quem publicou aquele classificado para que eu o lesse.
Lapso lingüístico: há sessenta anos, a palavra ‘branca’ designaria, entre as donas de casa de São Paulo, uma característica física neutra, como alto, baixo, jovem etc. Não conteria o valor racial e, portanto, manifestamente ideológico, que a ela atribuímos atualmente.
Lapso do sentido: nos anos quarenta do século passado, a recusa à pessoa não-branca talvez não se revestisse de uma carga de ódio racial, mas, ao contrário, talvez fosse indício de um abrandamento aceitável desse mesmo ódio. Não fosse assim, a recusa não estaria expressa num anúncio de jornal com assinatura e endereço embaixo. Aquela forma de tratamento – ‘negras não, por favor!’ – estava inscrita dentro da norma, da normalidade de tratamento entre os cidadãos.
Por fim, o lapso do inconsciente: as camadas que recobrem o que nos é intolerável – e o que nos é intolerável não é outra coisa que não a expressão de nossa própria intolerância – surge falhada, esgarçada, desfeita pelo imenso hiato entre o instante que o jornal foi editado e o momento em que ele chegou ao seu destinatário improvável – eu.
Levando adiante essa perspectiva de leitura, eu diria que o salto de sessenta anos traz até o meu olhar aquilo que hoje nos vexa – e que há sessenta anos era normal e, por ser normal, talvez fosse invisível. Penso que os leitores de 1947, incluídas aí as candidatas negras à vaga na cozinha da Dona Helena, poderiam dizer algo como ‘que mal há em uma patroa ter preferência quanto à cor da pele de sua cozinheira?’ O raciocínio não é tão descabido. Hoje, em 2008, nós ainda achamos natural que se recrutem recepcionistas de ‘boa aparência’, não achamos? A cor da pele, há sessenta anos, na cabeça dos editores da sessão de classificados do Diário Popular, poderia ser algo como um atributo da ‘boa aparência’. Ou não?
Aliás, que história é essa de ‘boa aparência’? Será que dentro de trinta ou sessenta anos, caso alguns dos nossos jornais fiquem dormindo num móvel que será lustrado no futuro, essa expressão, ‘de boa aparência’, não poderá chocar alguns dos nossos descendentes?
A tolerância com a intolerância
De que me serve um Diário Popular cujos jornalistas já não existem mais? De que me serve um anúncio que oferece um emprego que já não está mais disponível?
Ele me serve apenas para mostrar que a letra, ali, repousa sobre um lugar que se deslocou. Ele serve para me dizer que a imagem fixa posta pela instância da letra também se move. Aquilo que está posto ali, daquele modo, já não é um retrato da mentalidade dominante na cidade de São Paulo. Aquele velho retrato, posto pela instância da letra, não no inconsciente, mas no jornal, foi revogado. Hoje, não aceitaríamos um anúncio com os mesmos dizeres em qualquer órgão de imprensa. Por isso, tendemos a constatar que houve uma evolução de mentalidade. Ou, pelo menos, houve uma alteração no tecido discursivo pelo qual o inconsciente se esconde, mergulhando na escuridão com as intolerâncias que o sujeito não consegue tocar com os dedos.
Isso significa dizer que o racismo acabou nas páginas dos jornais? Não exatamente. Mas significa, sim, que as manifestações explícitas de racismo recuaram. Significa que somos uma sociedade menos intolerante. Bem, quanto a isso, a resposta seria imensamente mais lacônica – e inconclusiva.
A nossa intolerância já não se manifesta contra a cor da pele. Não como antes. Não tão abertamente, no plano da letra posta, escancarada, na página de um diário de boa circulação. Mas, estranhamente, a intolerância anda por aí. Ela agora não se volta contra as ‘raças’, mas dá sinais de que se levanta contra as opiniões acerca do tema das raças. Hoje, a intolerância é mais um obstáculo para o diálogo do que uma barreira racial no mercado de trabalho – ainda que essa, lamentavelmente, ainda ocorra. Talvez não seja mais tão difícil lidar com o nosso racismo – por mais que ainda sejam tortuosos os caminhos para localizá-lo e superá-lo – como ainda é difícil lidar com a nossa intolerância no plano das opiniões sobre os pontos em que a civilização brasileira ainda guarda ou já não guarda traços do racismo. A nossa intolerância é da ordem do diálogo, da obstrução ao diálogo. Como aquela outra, mais antiga, é uma intolerância tolerada, e às vezes aplaudida como se fosse prova de valentia cívica. Não impede o acesso das moças pobres a um emprego na casa da Dona Helena de 1947, mas talvez impeça o acesso de alguns ao suporte material onde se trabalha a letra – que depois nos servirá de instância.
O que já é outra conversa, mais problemática, que não será feita agora.