Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa líquida de Zygmunt Bauman

 

A entrevista do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, levada ao ar no domingo (3/6) pela TV Cultura de São Paulo, ajuda a interpretar certas características da imprensa contemporânea em seu esforço por manter alguma relevância diante do cenário de dissolução de velhos paradigmas que marcaram a sociedade até o fim do século passado.

Evidentemente, o ponto mais instigante de suas reflexões, no que se refere ao objeto de nossas observações, é a possível interpretação sobre as mudanças que a imprensa precisa enfrentar no contexto que o pensador chama de “modernidade líquida”. Num ambiente em que, segundo ele, tudo se torna fluido, diluem-se também antigos elementos concretos de conexão, que se tornam inconstantes e instáveis. A imprensa, como outras instituições sólidas, tende a se desmanchar.

O pensamento de Bauman oferece um interessante arcabouço conceitual para o entendimento de certas características que podem ser facilmente observadas na imprensa tradicional. Um deles é sua tendência a se apropriar do poder, que se dissociou rapidamente da política com a redução do papel do Estado, a ascensão do individualismo e a colonização do espaço público por instituições privadas.

Entidades “líquidas”

Essa constatação permite compreender, por exemplo, por que razão a atividade jornalística, praticada sobre a plataforma de entidades privadas, se comporta como detentora de atribuições típicas do antigo poder político.

Assim como, na esfera do Estado, indivíduos organizados em partidos políticos exercem na verdade o papel de defensores de interesses privados, a imprensa, instalada no ambiente privado, invade áreas que historicamente sempre pertenceram à esfera pública, para exercer um poder típico da política.

É nessa mudança de campos, aliás, que a imprensa tenta reinstalar sua antiga hegemonia sobre a sociedade, criticamente abalada pelo advento das novas tecnologias digitais, que dissolvem aquilo que antigamente se chamava mídia. Para isso, ela precisa se apropriar de valores e crenças fundamente arraigados no imaginário humano e que ainda compõem o conjunto de laços formadores de comunidades.

Embora o sentido dessa palavra tenha se corrompido ao longo do tempo, principalmente em função da colonização do espaço comum pelo jogo do consumo, o ser humano ainda depende desses vínculos de comunidade para sobreviver e se sentir seguro.

Embora pareça um truísmo por representar aquilo que para muitos é apenas uma verdade banal, a expressão “partido da imprensa golpista”, pode, então, ser analisada em termos mais complexos. Não se trata, evidentemente, de um partido formalmente constituído, mas de uma “instituição líquida” que se solidifica conforme se evidencia o interesse comum de seus integrantes em atuar como uma forma de poder no campo político.

O exercício da política também é influenciado pelo estado “líquido” das entidades sociais, e claramente se pode perceber como muitos protagonistas desse jogo agem de maneira fluida entre os escaninhos do poder, em grupos que não têm necessariamente uma sigla em comum, na defesa de seus interesses. Foi assim na constituição do poder exercido para consolidar o projeto de flexibilização da legislação de proteção ambiental.

Vozes amplificadas

Reportagem do Estado de S.Paulo sobre o comportamento dos diversos grupos durante a votação do Código Florestal, publicada na segunda-feira (4/6), mostra, por exemplo, que os integrantes da chamada Frente Parlamentar Ambiental votaram de acordo com os propósitos da bancada ruralista.

Muitos deles integram simultaneamente os dois grupos de poder, apesar do conflito evidente entre as duas propostas.

Assim, além de desfazer o tecido da organização partidária, essa fluidez também desmancha o próprio conceito tradicional de política, transformando todas as ações em jogadas isoladas conduzidas por um conjunto de interesses específicos.

Nesse cenário, a imprensa também dissimula a verdadeira motivação privada de suas ações sob o manto do “interesse público”, assumindo o papel de um “partido político líquido” cujos integrantes não precisam assinar uma ficha de filiação – basta que demonstrem afinidade total com o conjunto ideológico que pode ser lido no noticiário e no opiniário dos meios controlados pelas grandes empresas de comunicação.

No campo político não partidário, esse contexto ainda é visto com olhos do século 20, o que dificulta a organização de ações mais efetivas contra o poder “liquefeito” das forças conservadoras, empenhadas em mitigar os efeitos das mudanças sociais.

As chamadas forças progressistas, que supostamente deveriam atuar em favor das mudanças, demonstram clara repulsa às tecnologias que amplificam a voz dos indivíduos e abrem os espaços para a livre manifestação política. Forma-se, dessa maneira, o quadro das complexidades que parecem escapar entre nossos dedos.