Terceiro de uma série de quatro artigos sob o título geral ‘A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias’. Leia também ‘A missão de servir ao cidadão e vigiar o poder‘ e ‘A liberdade de imprensa entendida como um dever‘
Um dos indicadores mais comumente adotados para a verificação do cumprimento da responsabilidade social do jornalismo tem sido a cobertura dos movimentos sociais, entendidos como aqueles movimentos organizados cujos protagonistas pertencem às camadas mais pobres do país. Pesa, também, nesse tipo de avaliação, a cobertura dos debates suscitados por esses movimentos dentro do Estado, ou no contato entre as estruturas do Estado com a sociedade civil, como nas recentes conferências nacionais – com milhares de participantes, primeiro nos Estados e depois em plenárias nacionais em áreas como cultura, cidades ou meio ambiente. Numa visão um tanto linear, acredita-se que, quanto maior a cobertura em qualquer tipo de órgão de imprensa, maior o compromisso do jornalismo com a sua responsabilidade social. Há outros indicadores, mas esse tem se sobressaído.
De início, é bom saber que existe aí uma cobrança tipicamente militante. Proposital ou inadvertidamente, alguns dão o nome de responsabilidade social ao engajamento do jornalista nas reivindicações desses que também são chamados de movimentos populareslitantes, que aqui precisam ser desprezadas. . O que os adeptos do engajamento postulam não é, portanto, uma imprensa livre, mas uma imprensa submissa ao discurso desses setores organizados. Claro que quando o jornalista aceita cumprir tal papel renuncia à sua liberdade e à sua responsabilidade social – que não se realiza pelo engajamento, mas pelo seu contrário, quer dizer, pelo desengajamento em relação aos discursos prontos que buscam se infundir no seu relato.
A cobrança militante não leva em conta que, a despeito de valorações subjetivas que comparecem a qualquer enunciado, jornalístico ou não, o jornalismo almeja prover a sociedade de informações objetivas e, portanto, úteis ao debate público; por isso, procura apurar, editar e veicular conteúdos tendo em vista as necessidades, as demandas e os direitos do seu público, ao qual informa e com o qual dialoga. Logo, para fins de análise da boa ou má cobertura dos movimentos sociais, a cobrança militante em nada ajuda. Deve ser descartada sumariamente.
Atendimento parcial
O problema da cobertura, contudo, persiste. Se for verdade que a imprensa ignora, ainda que apenas em parte, os movimentos sociais, será também verdade que ela fecha os olhos para uma parcela significativa da realidade com que lida. Por certo, seria um destempero pretender que todos os órgãos de imprensa falassem do assunto do mesmo modo, assim como seria pouco sensato esperar de todos, indistintamente, notícias iguais sobre astronomia, golfe, futebol ou agropecuária. Cada um tem o seu repertório próprio, sua agenda própria, sua audiência própria, mas, se é fato que o cidadão não dispõe de veículos que o informem com qualidade sobre os movimentos sociais, algo não vai bem.
Costuma-se dizer que a cobertura dos movimentos sociais é insuficiente. Ainda que não tenhamos estatísticas exaustivas à mão, admitamos que a postulação seja verdadeira, nem que seja para efeito de raciocínio. Sem cobranças militantes, é o caso de refletir sobre as razões da possível insuficiência. Por que, afinal de contas, a cobertura seria escassa? Talvez pela falta de público interessado. Será? Haveria público para essa cobertura? Há demanda?
Admitindo, pois, a possibilidade de insuficiência da cobertura, eu gostaria de suscitar uma hipótese que ajudasse, se não a explicá-la, ao menos a considerar a plausibilidade de sua veracidade. A minha hipótese diz respeito, de início, ao jornalismo impresso: eu diria, então, que a cobertura é débil porque, em parte, os personagens dos chamados movimentos sociais não estão entre os leitores das principais publicações do país. Ou seja: os movimentos sociais não figuram tanto na pauta porque seus protagonistas não figuram entre os consumidores do pacote jornalístico (que é a mercadoria comercializada por jornais e revistas).
A cobertura deixaria a desejar não porque os jornalistas são técnica ou culturalmente despreparados, embora a variável não possa ser desprezada – assim como não pode ser desprezada a origem social dos jornalistas que, em sua imensa maioria, são filhos de classe média que, em sua história de vida, tiveram pouco ou nenhum contato com integrantes dos movimentos sociais e as áreas em que estes moram –, mas porque seus públicos leitores ainda são quantitativamente reduzidos e qualitativamente pouco heterogêneos, não refletindo a composição da sociedade inteira. Dessa forma, os jornalistas, ao prestar serviços aos seus públicos habituais, cumprindo, portanto, o seu papel de servir ao leitor, atendem apenas a uma parte da sociedade, a parte que os lê. O público com que dialogam é parcial – daí a parcialidade da pauta com que trabalham.
Baliza do consumo
Um veículo jornalístico, se bem-sucedido, tem menos a cara do seu editor e mais a cara do público ao qual se dirige. A ele presta serviços. É, pois, explicável, ainda que não seja desejável, que os jornais diários, no intuito de ser úteis a seu leitorado, falem da realidade das pessoas que os lêem como sendo toda a realidade imediata que interessa.
O ponto é que, nos grupos de leitores dos diários tradicionais do Brasil, ao menos como regra, não entram a maior parte dos ativistas dos movimentos sociais – estes não são assinantes, raramente são compradores de exemplares avulsos e também não consomem os produtos anunciados nas páginas de publicidade. Se é mesmo assim, por que é que se vai se falar, vejamos, de um movimento de favelas num jornal que é lido nos bairros elegantes? A resposta é simples: só se falará disso quando esse movimento afetar a normalidade dos habitantes dos bairros onde se concentram os leitores.
De acordo com a minha hipótese, os participantes dos movimentos sociais, em sua maioria, são retratados meramente como terceiros distantes, comparecendo às reportagens como ameaças externas à rotina dos leitores. Considerando ainda que as fontes mais habituais dos jornais emergem do grupo daqueles que os lêem, ou seja, considerando que o conjunto das fontes pertence ao conjunto dos leitores, vê-se também que o diálogo estabelecido, nas páginas dos jornais, entre os agentes do debate público, também exclui, ao menos como regra, se não todas as lideranças, ao menos os participantes dos movimentos sociais. Nesse ambiente, eles surgem como seres longínquos e estranhos, mais ou menos como os rebeldes das cercanias de Bagdá ou os famélicos da África. Com uma distinção: podem atirar uma pedra no telhado dos leitores e, por isso, tangenciam mais de perto a agenda desses leitores.
A ser válida a hipótese que apresento, as conseqüências se projetam para além dos meios impressos. Como as redações de jornais diários e de revistas têm sido escolas para gerações sucessivas de profissionais, que depois migram para outros veículos, a mentalidade que nelas se cultiva interfere também nos outros meios. Os parâmetros, os valores e, por vezes, os preconceitos que se verificam nas redações dos meios impressos viram referências – não necessariamente dominantes – para a prática do jornalismo em geral.
Com efeito, sem cair na armadilha das generalizações, podemos observar que, às vezes, até nos noticiários de televisão os movimentos sociais ainda aparecem como um ‘movimento deles’, como se seus protagonistas não compusessem sequer o público telespectador.
Há um elemento perverso nessa exclusão que alcançaria os meios de radiodifusão, a TV em especial. Os agentes dos movimentos sociais, quando pertencentes a camadas sociais que não têm acesso aos bens de consumo, a despeito de integrarem o amplo espectro de telespectadores, não fazem parte da audiência com poder de compra mínimo. Como o consumo serve de baliza para o modo como a publicidade na TV dialoga com o telespectador, esse público que não chega a ser consumidor potencial termina por se ver estigmatizado, diante da tela, como sendo uma subplatéia: os mais pobres não são vistos como compradores pelo anunciante. Por desdobramento, quase que automático, por mais que os editores de televisão creiam no contrário, esses segmentos não são convidados a ser interlocutores do discurso jornalístico da TV.
Desafio editorial
Guardadas as proporções de praxe, pode-se considerar a mesma hipótese para uma análise do radiojornalismo. O não-consumidor tende a ser um não-interlocutor. Nessa medida, os parâmetros estreitos herdados da tradição dos diários se converteriam, sempre em hipótese, num tipo de preconceito inercial no jornalismo da TV e do rádio, mas um preconceito perversamente lógico, sustentado pela estratificação imposta pelo consumo.
A história recente traz casos que reforçam a hipótese. O Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, entrou na cobertura da televisão um pouco tardiamente, em meados dos anos 1980. Adquiriu destaque nos noticiários por ocasião do massacre do Eldorado dos Carajás, que foi ao ar em cenas trepidantes gravadas por amadores. [Neste episódio, ocorrido em abril de 1996, 19 trabalhadores rurais foram assassinados pela polícia militar do Pará. As vítimas eram integrantes da Caminhada pela Reforma Agrária, que reunia 1.500 famílias de trabalhadores sem terra. De acordo com o Instituto Médico Legal (IML) do estado, todos os mortos foram atingidos por balas, várias delas disparadas à queima roupa: o parecer final concluiu que muitas das vítimas foram dominadas e, em seguida, executadas. Apesar das provas contundentes, até o momento de fechamento deste livro a Justiça não havia punido de forma efetiva os responsáveis pelos crimes.] Foi por ter rendido imagens espetaculares, e não em função da identidade dos mortos, que o massacre ganhou destaque nos telejornais.
Depois, principalmente pela novela O Rei do Gado, da Rede Globo, o drama dos sem-terra foi admitido na sala da família brasileira. Mesmo assim, até hoje, é em regra como ameaça externa, semelhante a uma gripe aviária, que as lutas sociais do campo irrompem na tela. Os trabalhadores da terra, talvez mais do que seus líderes, ainda não desfrutam do status de interlocutores no âmbito da comunicação jornalística. O fato de não pertencerem ao grupo dos que se comunicam normalmente pelas páginas dos jornais e às camadas sociais com acesso ao consumo é o que mais os segrega, muito mais do que os julgamentos morais ou políticos que recebam de uns e outros.
A responsabilidade social do jornalismo passa por assumir o desafio editorial de expandir e qualificar a base de leitores de notícias, em meios impressos e eletrônicos. Do mesmo modo, passa por separar os critérios que filtram o acesso ao consumo dos critérios da admissibilidade do cidadão à condição de interlocutor do discurso jornalístico. [Continua]
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (São Paulo: Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007