A omissão é um dos pecados capitais da imprensa, mas não se espere algum arrependimento dos donos dos diários de Belo Horizonte no caso do mensalão tucano, do valerioduto mineiro ou do caixa 2 da campanha de Eduardo Azeredo em 1998 – qualquer que seja o nome escolhido. A omissão tem um preço. Entre a perda de confiança do leitor em seu jornal e o ganho em publicidade do governo, fica evidente, pela leitura que se faz dos diários belo-horizontinos nos últimos dias, para onde pende a balança. Confiança parece ser um artigo de luxo, raro e descartável, ao contrário da verba publicitária do governo tucano em Minas Gerais.
Mais de nove anos depois do fato, os leitores de jornais mineiros souberam, pela primeira vez, na sexta-feira (23/11), que o ex-governador Eduardo Azeredo, do PSDB, usou caixa 2 – vá lá, é o que dizem os jornais da capital mineira – na sua campanha de reeleição, em 1998. Mas só tomou conhecimento quem se deu ao trabalho de ler o texto, não se limitando aos títulos, como faz a maioria dos (e)leitores que costumam se informar lendo os jornais expostos em bancas de revistas.
O de maior tiragem no país, o Super Notícia, editado em Contagem, na região metropolitana, deu o assunto na primeira página, discretamente, mas apenas o título: ‘Mensalão derruba mineiro de ministério’. O leitor teria que comprar o jornal por 25 centavos e ir à página 11 para saber, em apenas nove linhas de notícia, que o derrubado era o ministro Walfrido dos Mares Guia, ex-vice-governador, ex-secretário estadual da Educação e dono do poderoso sistema Pitágoras de ensino. Nos dias seguintes, o assunto simplesmente sumiu do jornal.
Demissão e ‘injustiça’
Outro diário do mesmo grupo do ex-deputado federal tucano Vittorio Medioli, O Tempo, foi mais informativo, abrindo manchete sob a versal CAIXA DOIS: ‘Denúncia de Valerioduto derruba ministro Mares Guia’. Ainda na capa, informou em retrancas, com subtítulos: ’15 pessoas são acusadas de caixa 2 na campanha tucana de 98 em MG’, ‘Relação inclui senador Eduardo Azeredo, ex-governador do Estado’, ‘Acusados contestam ‘mensalão tucano’’. Dentro, o leitor encontrava o assunto em uma página e meia, mais outra página sobre a indicação do substituto de Mares Guia e do ministro da Fazenda para cuidar da importante questão da aprovação da CPMF no Senado, um trabalho que vinha sendo feito pelo ex-ministro das Relações Institucionais.
O concorrente do Super, o Aqui, dos Diários Associados, achou que o assunto não interessava aos seus leitores – aqueles que se animam a gastar 25 centavos para comprá-lo. Até quarta-feira, dia 28, não tocou no caso.
O jornalão dos Associados, o Estado de Minas, deu manchete ‘Walfrido se afasta após a denúncia de caixa 2’, mas tratou o assunto em apenas uma página, metade dela dedicada à defesa do ex-ministro e do senador Eduardo Azeredo.
O Hoje em Dia, do bispo Edir Macedo, deu manchete de capa: ‘Walfrido deixa o Governo’, com um bigode: ‘Caixa dois – Denúncia de valerioduto derruba ministro Mares Guia’. A manchete da notícia, dentro, é mais significativa: ‘Walfrido se demite e se diz injustiçado’.
Aliado do avô
Na edição de sábado (24/11), o caso ainda mereceu pequena chamada de nove linhas na primeira página de O Tempo, sob um título ‘STF corre contra o tempo para analisar valerioduto’. Para um leitor mais distraído, podia ser, perfeitamente, o famoso valerioduto que, em 2005, ocupou durante meses páginas valiosas de jornais do país inteiro e tempo precioso de rádios e televisões. No presente caso, uns e outros se limitaram ao mínimo, concentrando-se principalmente em falar da queda e substituição do ministro Mares Guia e sua possível repercussão para a aprovação da CPMF.
Quanto a isso, todos foram omissos, mas como a Globo Minas é a de maior audiência, sua omissão fica mais clara. Mas é compreensível. Os 15 denunciados são, com maior ou menor intensidade, aliados do governador tucano Aécio Neves, que nos últimos dois semestres foi o conferencista convidado da reunião dos funcionários mineiros da Rede Globo. O governador fez questão de comparecer, e foi convidado para a próxima, na segunda-feira (3/12). É esperado com grande ansiedade pela diretoria mineira da TV da família Roberto Marinho, um velho aliado do avô do governador, Tancredo Neves.
Solidariedade mineira
Voltando aos jornais. O Tempo de sábado deu o ‘caixa dois’ em duas páginas: na pág. 3, com o título ‘Relator do STF corre contra o tempo’; e na 5, ‘Aécio faz visita de solidariedade a Azeredo’. Os dois velhos aliados se encontraram em Brasília. Ao contrário do jornal do ex-tucano Medioli, que ainda sustentou o assunto na capa, o jornal do fundador da Igreja Universal do Reino de Deus tratou-o apenas dentro, em duas notícias, sob os títulos ‘Azeredo recebe visita de Aécio’ e ‘Alencar descarta envolvimento de Mares Guia com ‘mensalão mineiro’’. Ou seja, partiu para a defesa.
O Estado de Minas chamou o assunto discretamente, na página 1. ‘Caixa 2 – Procurador-geral quer punição rigorosa’, dizia o título, e ameaçava os 15 denunciados com penas que ‘podem variar de 36 anos e meio a 172 anos de prisão’. Como ninguém, provavelmente, acreditou nisso, a ameaça ficou por isso mesmo nos dias seguintes. Mas o EM mostrou-se ainda valente, ao tratar o assunto ‘Caixa 2’ nas páginas 6, 7 e 10 da edição de sábado. Na página 7, ao lado de um anúncio de mais de meia página das Casas Bahia, destacava-se o título ‘Aécio sai em defesa de Eduardo Azeredo’. O mais interessante estava na página 10, em que o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, do PT, dizia que só afastaria o secretário municipal de Finanças, José Afonso Bicalho Beltrão, um dos 15 denunciados, ‘se forem apresentadas provas contra ele’.
Foi o único jornal a se ocupar de Beltrão – e, até agora, ficou por isso mesmo. É verdade: a prefeitura da capital é também grande anunciante.
Outra curiosidade naquela página 10 do EM foi a entrevista do vice-presidente da República, José Alencar, defendendo Mares Guia e Azeredo. Em outra entrevista, o senador Eliseu Resende (DEM-MG) exagera: ‘Ponho a mão no fogo pelo Eduardo Azeredo, pela pessoa dele’. Não é verdade, como teria dito Otto Lara Resende, que mineiro só é solidário no câncer.
O ‘demolidor’ de Brasília
Mineiro, ou pelo menos os donos da imprensa, é tão solidário com os poderosos denunciados, que no domingo o ‘caixa dois’ praticamente sumiu dos jornais. No Estado de Minas, duas notícias irrelevantes. Na segunda-feira e no dia seguinte, ele se esqueceu completamente do caso.
O mais curioso foi O Tempo, que tirou o assunto da capa na segunda-feira e, na página 3, deu uma entrevista de página inteira, no formato pingue-pongue, com o novo secretário-geral do PSDB nacional, o deputado federal mineiro Rodrigo de Castro. Ele é filho do secretário de governo Danilo de Castro, um dos envolvidos no valerioduto, mas ainda não denunciado pela Procuradoria-Geral da República. A repórter Denise Motta fez as perguntas. Foram 16 publicadas, nenhuma delas relacionada com o problema que aflige no momento os tucanos mineiros. E uma colunista de política de O Tempo, Raquel Faria, tratou de apimentar o pastel do denunciante, com uma nota sob o título ‘O demolidor’. Diz ela:
‘Antonio Fernandes de Souza, o procurador-geral da República que hoje toca afinado na orquestra do presidente Lula, de olho na vaga do ministro Eros Grau no STF, está sendo chamado em Brasília de ‘demolidor’. Ele tem material para detonar inúmeras novas denúncias do valerioduto mineiro, comprometendo mais figuras tucanas – se as circunstâncias assim o exigirem’.
Perguntas de bom pauteiro
Na terça-feira (27/11), o assunto estava praticamente enterrado. Pela primeira vez numa página de opinião de um diário belo-horizontino, saiu um artigo com referência ao, vá lá, ‘caixa 2’ tucano. A ex-secretária-geral do Ministério do Trabalho no governo Lula, Sandra Starling (ela saiu brigada com o ministro e hoje governador baiano Jaques Wagner), fundadora do PT e primeira candidata do partido ao governo de Minas, em 1982, concorrendo com Tancredo Neves, pôs o dedo na ferida. Ela publica toda quarta-feira um artigo no O Tempo, apresentada como advogada e cientista política. Ontem, ela começou a falar da questão já no quarto parágrafo:
‘Falo disso porque quero ver esclarecidos todos os episódios do valerioduto, vá lá que seja, mineiro. Especialmente, quero saber o que se passou em 2002, que parece ser, até agora, como nos primeiros mapas das grandes navegações, uma ‘terra incógnita’. Que alguns petistas copiaram alguns tucanos, já fica muito claro. Mas, quais petistas? Quais não-petistas? Quais não-tucanos? Os contratos da DNA com o governo federal já existiam desde meados dos anos 90. Ou seja, muito antes do governo Lula. Quem os pactuou? Como? Com quais interesses? O procurador-geral da República já pediu investigações na Fundacentro, do Ministério do Trabalho. Vai parar aí? E no Ministério dos Esportes? E no Banco do Brasil, onde a prorrogação do contrato com a DNA, em 1995, foi impugnada pelo TCU, em 2002 (Decisão nº 254/02)? E nos setores de telecomunicações e energia, as investigações irão adiante? Se Minas Gerais deles usufruiu, como sustenta o procurador-geral, quantos terão usufruído em São Paulo, Distrito Federal e Goiás, onde a DNA e a SMP&B também atuavam? Temo que a verdade fique pela metade e que, assim, alguns paguem o pato. Bodes expiatórios são convenientes para encobrir verdades inconvenientes. É isso que me angustia.’
Sandra Starling fez perguntas que qualquer bom pauteiro de jornal faria. E estaria desempregada se tentasse um emprego de pauteiro em jornal mineiro, para esclarecer todas essas questões…
******
Jornalista, Belo Horizonte, MG