Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Abin e os cães de Lázaro

Como gosta de lembrar o repórter Rubens Filial Valente, Max Weber chamava os jornalistas de política de ‘cães de Lázaro’: ficam aguardando as migalhas que se lhes atiram. Os cães de Lázaro, de uns tempos para cá, migraram da política (de seus trambiques e sinecuras) e reingressaram discretamente no aparelho do poder cobrindo assuntos de inteligência. Uma área que muitas vezes não dispõe –ainda que requeira – do vocábulo que lhe dá o nome, e assim o que era inteligência acaba virando uma persuasão adulatória por meias-verdades.

Arruaças têm se processado na cobertura da área de inteligência, insufladas pela notícia da abertura dos arquivos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Por exemplo: mês e meio atrás, Thomas Traumann, colunista da revista Época, noticiou, em primeira mão, que os arquivos, em poder da Abin, gerados pela Comissão Geral de Investigações (CGI), traziam cambalachos tonitruantes de políticos como Juscelino Kubitschek de Oliveira, Paulo Maluf e Orestes Quércia. Coçando o coldre na hora certa, o Estado de S.Paulo foi atrás da notinha e uma semana depois trazia uma página sobre as novidades dos arquivos CGI – que seriam, já digitalizados, transferidos da Abin para o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.

Mas a gabolice durou pouco: os arquivos noticiados eram os que já estavam depositados há séculos no Arquivo Nacional, e não os que a Abin iria começar a transferir.

Da mesma forma, notícias substantivas, ainda que sujeitas a variações adjetivas, brotaram em outras mídias, sempre se atendo à questão dos arquivos da Abin. No último fim de semana foi a vez da revista Veja.

Gado bíblico

Malgrado a publicação seja um jogo de armar, com preceitos sobre o que a classe média bebedora de uísque deve consumir ou pensar, Veja sempre zelou por grandes reportagens. Desta vez, cometeu-se um erro, parecendo, de tão fresco e inexaurível que foi, um daqueles desvios encomendados: omitiu-se da reportagem – a mostrar suposta doação de dólares das Farc colombianas para a campanha de Lula – que os documentos foram produzidos na Abin de Fernando Henrique Cardoso e do general Alberto Cardoso (que na Abin era chamado, na octaetéride de FHC, de ‘o Cardoso que manda’).

A reportagem, omitindo esse dado, induziu o leitor a crer que a atual Abin anda dando de barato documentos sobre (e contra) o governo que a governa.

Os ‘cães de Lázaro’ que andam cobrindo inteligência também não andam contando aos leitores que, seja no SNI ou na Abin, muita coisa é copiada de jornal (o general Golbery do Couto e Silva, quando chefe do SNI, gostava de dizer que o Serviço não funcionava às segundas-feiras porque ‘jornal não saia de segunda-feira’, numa rematada sacanagem aos agentes que copiavam o Estadão na época que este não circulava às segundas…)

Os cães de Lázaro também não têm contado aos leitores que, seja na Abin ou no finado SNI, os ‘informes’ são relatórios produzidos pelos arapongas e levam esse nome porque são repletos de informações primárias, de lodo, de fofoca, de informação enviesada. Aos informes seguem-se os relatórios de ‘informações’, estes sim trazendo algo mais crível ou minimamente confiável. E o que a imprensa tem noticiado são ‘informes’.

Seja para consumidores ou ministrantes, a mídia deveria deixar claro que deve-se tomar cuidado ao publicar meias-verdades. Nesse sentido, o governo está dando sinais de responsabilidade em não escancarar os arquivos da Abin.

Não há dúvidas de que ações e ações cíveis e indenizatórias devem pipocar, contra o governo e contra jornalistas sobretudo, caso arquivos com ‘informes’ comecem a ser divulgados à espartana, como gado bíblico.

Esse é todo o reino dos cães de Lázaro.

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Jornalista, mestre em psicanálise da comunicação, doutor em filosofia das ciências e autor de Falácia Genética: a Ideologia do DNA na imprensa (Escrituras, 2004)