O leitor desta página não quer mais ler sobre Michael Jackson. Com razão. Desde que morreu, no dia 25 de junho, o chamado Rei do Pop monopolizou o noticiário. A humanidade só tem olhos para o cantor de Ben. O tão propalado pensamento único parece que existe mesmo e seu nome é Michael. O pensamento único é um videoclipe, uma trilha sonora. Há dois dias o rádio noticiou que são dele quatro dos cinco discos mais vendidos em Londres. Na terça-feira da semana passada, as atrações de seu funeral apoteótico reuniram 11.500 fãs num ginásio de esportes, o Staples Center, de Los Angeles. Outros 250 mil ficaram de fora, dançando ou chorando. Lá dentro, cantores e oradores se sucederam em performances para o caixão e para as câmeras de 19 redes americanas. Só nos Estados Unidos, foram 30 milhões de telespectadores. No Brasil, quatro redes puseram no ar vários trechos da cerimônia, que foi estruturada como um réquiem pop. Teve até área VIP.
O jornalista Jotabê Medeiros, enviado especial do Estado à Califórnia, estava lá: ‘Assisti aos shows do funeral do Rei do Pop na área reservada aos familiares e amigos. Mike Tyson estava ali. Mickey Rooney passou perto da minha orelha. Jesse Jackson sorriu para mim e posou para uma foto.’
No tempo da Jovem Guarda, havia festas de arromba. Agora, surge o velório de arromba, que impulsiona o mercado fonográfico e abastece a imprensa por dias e dias. Ainda esta semana os jornais se ocupam das polêmicas em torno da guarda dos filhos do astro. O assunto é inesgotável – e estafante. Por isso mesmo o leitor há de se espantar: mas até aqui, nesta página, teremos de falar disso?
De minha parte, digo que sim. Não por tietagem, mas para registrar algo que, apesar do falatório global, não foi bem diagnosticado. O funeral de Michael Jackson explicitou, como nenhum outro episódio, o modo como a indústria do entretenimento engoliu as outras esferas da vida – a religiosa em particular. A ribalta devorou o púlpito. É verdade que, já em 1997, nas despedidas de Lady Di, Elton John se apresentou atrás de seu piano e de seus óculos, mas ele foi cantar dentro da Abadia de Westminster, o templo em que o culto foi celebrado. Desta vez foi diferente: os pastores é que subiram ao palco dos entertainers. Atenção, irmãs e irmãos: o altar se dissolveu no palco.
Não pretendo aqui denunciar a rendição do sagrado ao profano. O meu ponto não é religioso, é cultural. É na cultura que o entretenimento se firmou como a única forma de representação possível, desbancando as outras – a religiosa inclusive. A linguagem do show business, com trinados em semitons, meneios de cabeça com olhos fechados e luzes computadorizadas, triunfou sobre eucaristias, homilias e transcendências confessionais. Engolfou-as por inteiro. Michael é pop. Perto dele o papa não é pop coisa nenhuma, ao contrário do que cantam. Qual dos dois haveria de prevalecer? Qual dos dois haveria de dar o formato dos rituais do nosso tempo?
Comecei este artigo dizendo que Michael Jackson é o pensamento único. Falei em tom de chiste, admito, mas poderia ter falado sério. Se o pensamento único tivesse uma cara, seria a cara mutante do Rei do Pop: a cor da pele indefinida, o semblante esculpido ao vivo pelas tendências da moda, a infantilização da libido (mais que a erotização da infância). Num tempo cujo conteúdo supremo é apenas forma, a forma-espetáculo, Michael foi espetáculo em estado puro. O pensamento único, no fundo, seria isso, um formato, mais que uma ideia. É por aí que se entende por que a política se despolitizou e, despolitizada, vem tentando se resolver pela estética da publicidade. É por aí que se entende por que a ciência se oferece à visitação pública em parques temáticos, tendo a Nasa como carro-chefe. Ou ela faz isso ou não encontra legitimação. Mesmo a ecologia, com as mais respeitáveis causas ambientalistas, só se faz ouvir quando adota táticas teatrais de forte efeito visual – o Greenpeace é um guerrilheiro da imagem. Até o terrorismo, sobretudo depois do atentado ao Word Trade Center de 2001, aprendeu a agir para gerar horripilantes happenings midiáticos. Todos falam a mesma língua, a língua do espetáculo, embora se apresentem como discursos antagônicos.
É nessa galáxia que Michael Jackson vira o centro de gravidade, o denominador comum. Ele não é o espírito do tempo que não tem espírito: é apenas o seu corpo ambíguo, quase etéreo. Mesmo sendo o corpo do tempo, a ele não foi dada uma ‘missa de corpo presente’, mas um show de alma ausente. Ele é a prova de que, em plena era digital, a cultura de massas continua de pé, de que a massa engoliu a missa. O gestual da diversão, com seus passos de dança e sua cadência vazia, é invocado para honrar os mortos. Não como sinal de alegria, de celebração livre, de um carnaval sem compromisso, mas de reafirmação impositiva da indústria.
Em 1933, Noel Rosa brincou: ‘Se existe alma, se há outra encarnação, eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão.’ Em 2009, a humanidade sapateou com tal convicção sobre o esquife luxuoso de Michael Jackson que parecia ter realizado a profecia de Noel Rosa, ainda que com o defunto errado. Mas não a realizou. O poeta da vila caçoava do luto hipócrita. Ele caçoava da religião. Em 2009, não há mais o luto religioso, não há o recolhimento sofrido – só nos resta a hiperatividade consumista. A hipocrisia agora se acomoda no show que não pode parar e que trata toda tristeza, inclusive o luto, como se fosse doença. Sapatearam sobejamente sobre o caixão de Michael, é claro, mas não para alegrar o seu ingresso no (duvidoso) outro mundo. Sapatearam para enfatizar o peso deste mundo aqui, ordenado pelo entretenimento, como a lápide que sepultou as outras fés. As almas não tiveram nada que ver com isso.
******
Jornalista, é professor da ECA-USP