SEGURANÇA PÚBLICA
A Tropa Púrpura do Rio, 27/10
‘Quando, fascinado pela trama de ‘Tropa de Elite’, o governador fluminense Sérgio Cabral Filho (PMDB), entra na tela e dela sai de braços dados com o capitão Nascimento, ficção e vida real se fundem na lógica fria de uma visão belicista de segurança pública.
(Se torturo um inimigo, seja em nome do que for, perco a razão que me faz guerreá-lo, uma vez que qualquer razão para poder subsistir, tem que se erigir sobre um fundamento ético que a precede- e a sustenta- Hélio Pellegrino)
Quando o astro principal de ‘A Rosa Púrpura do Cairo’, a maravilhosa fábula de Woody Allen, sai da tela para conhecer a garçonete Cecília, vivida por Mia Farrow, fantasia e realidade são magistralmente capturadas pela magia do cinema.
Quando, fascinado pela trama de ‘Tropa de Elite’, o governador fluminense Sérgio Cabral Filho (PMDB), entra na tela e dela sai de braços dados com o capitão Nascimento, ficção e vida real se fundem na lógica fria de uma visão belicista de segurança pública. Uma opção que muito revela sobre as condições que presidem o funcionamento de uma sociedade desde sempre fracionada.
Se o filme americano evoca vida, ilusão e esperança, a produção brasileira amplifica o apoio que ações mais violentas de combate ao crime têm na classe média brasileira. A garçonete faz parte de um roteiro de lirismo. O governador incorpora as subtramas do fascismo nativo. Ambos têm algo em comum: são intensos em suas escolhas. Delas não sairão incólumes. Não importa se enredo e técnicas sejam totalmente distintos.
O confronto como tentativa de erradicação da criminalidade, descontextualizada das graves causas sociais que a produzem, é procedimento ideológico destinado a encobrir o privilégio delinqüente e a culpa das classes dominantes. É a reiteração de que barbárie se combate com barbárie e que eficiência repressiva só é possível desrespeitando a lei e ignorando direitos humanos.
Não há nada de novo na terra em transe, salvo a glamourização da política do extermínio. As cenas de policiais em um helicóptero matando dois supostos traficantes que fugiam de uma operação na Favela da Coréia, realizada em 17/10, representam muito mais que um flagrante assustador: é o registro, como espetáculo, da execução sumária. O uso do Poder Público como simulacro de videogame. Uma ação ‘tolerável’ por ter acontecido em um ‘não-lugar’. A versão oficial, não pirateada, da continuação do filme em Senador Câmara, subúrbio do Rio de Janeiro. A morte imita a arte para deleite do governador e seu novo lugar-tenente.
Como já destacamos em artigo publicado em Carta Maior (O terror dos inocentes), ‘a tragédia da segurança pública é a tragédia de um Estado que, por nunca ter sido plenamente democrático e de direito, falhou no combate ao crime na mesma medida em que foi incapaz de implementar políticas públicas de inclusão’.
A política adotada na gestão de Sérgio Cabral, tal como a de governos anteriores, tem tanto impacto na mídia quanto pouca eficácia. A visibilidade é inversamente proporcional ao alto custo humano.Só se combaterá o tráfico quando o acesso à justiça for garantido pelo Estado. Enquanto questões centrais tais como regulamentação do uso do solo; urbanização ; saúde; lazer e cultura não forem sequer tangenciadas, o enfrentamento armado só aguçará a violência e o protesto perverso.
Mas a ‘bopização’ de Cabral não parou por aí. Para o governador, seguindo a tese do livro ‘Freakonomics ,’o aborto de mulheres pobres pode ser um excelente remédio contra a violência’ Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal’ Nunca foi tão explícito o local de combate ao tráfico: no útero. A invasão tem mais chance de êxito. Pouco importa se as estatísticas oficiais não lhe dêem amparo. O imaginário da classe média endossa suas afirmações.
Se o levantamento da Fundação Getúlio Vargas indica que a maioria de usuários no Brasil tem renda superior a R$9,5 mil, o que fazer com a ‘Suécia’ cheiradora? Reproduzir o ‘não procriem’ dos cartazes de protesto de universitários que marcaram o casamento dos filhos de políticos influentes do Rio,? Ou dispensar tratamento diferenciado?
Como pouco, ou nada, se sabe da filmografia da Zâmbia, talvez o governador deva assistir a um belo filme sueco: Em ‘O Sétimo Selo’, Antonius Block se nega a morrer enquanto não entender o sentido da vida. Consegue um trato. Enquanto conseguir contê-la em um jogo de xadrez, a morte o poupará. Como adaptar o jogo aos moradores da ‘Zâmbia’ se no tabuleiro repressivo o Rei é o caveirão? Bergman cede o lugar a Padilha.
Mas não há motivos para Cabral rever posições. Quando um personagem de filme, assassino e torturador,ascende ao panteão de heróis populares, não há por que mudar de rota. Os moradores da Suécia aprovam a tortura e execução dos zambianos. Só lhe pedem um favor: que poupe os serviçais. Sem problemas, para o governador do Rio de Janeiro missão dada é missão cumprida.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.’
INTERATIVIDADE
Alvéolos da democracia, 22/10
‘A chamada imprensa nanica, sobretudo a veiculada pela Internet, preenche alguns alvéolos dos pulmões da democracia formal brasileira e do mundo contemporâneo. Entretanto, não é capaz de fazer que funcionem à plena capacidade.
A tão celebrada interatividade da Internet permite que um número pequeno de pessoas possa ser ouvido por muitos. Um articulista escreve, outros comentam. Um repórter constrói uma notícia, seus leitores dizem o que pensam. Obviamente, isto é possível quando existem canais para isto. Na Internet, a inexistência deles é superada pelos inúmeros blogues, grupos de discussão, comunidades virtuais, páginas pessoais etc.
É impossível pensar, nesta teia atual, a possibilidade de se censurar completamente o fluxo da opinião. É verdade, que existem várias tentativas neste sentido. A mais conhecida é a do controle nacional ou empresarial da liberdade de opinião, exercida no meio eletrônico. Este não tem pátria ou governo, mas depende de recursos econômicos, equipamentos e de políticas de países, sociedades e grupos bem específicos. O mesmo meio vive um paradoxo tecnopolítico de difícil solução e que demanda esforços expressivos de resistência. Países ricos e pobres, de inúmeras orientações, registraram e ainda fomentam tentativas autoritárias deste gênero. Mesmo neste meio, a opinião continua sendo vigiada e controlada, lutando para se libertar de suas amarras.
Escrever e publicar um comentário sobre um artigo guarda relação com as antigas seções de cartas dos jornalões tradicionais. Difere-se profundamente das mesmas, por serem comentários quase sempre imediatos, publicados na íntegra e dirigidos ao autor de um artigo ou, mesmo, à discussão entre os próprios comentaristas. Nas velhas cartas, o endereço era o Jornal, um organismo público ou privado, ou, ainda, um assunto ou polêmica específica. Nos comentários de hoje, fala-se diretamente ao autor sobre o assunto que ele tratou. É verdade que por vezes o ‘tiro’ é dado em várias direções, usando-se do espaço para se falar de si próprio ou de outras pessoas.
Tais comentários, existentes na imprensa empresarial e nanica difundidas pela Internet, consistem em fontes de rara significação para se compreender o mundo mental de classes e segmentos sociais do país. Ao que parece, os comentaristas internéticos são, em sua maioria, jovens de até 40 anos e pertencentes às classes médias. Deduz-se isto, observando-se o acesso que dispõem, seus enfoques e modos de usar a língua portuguesa. Eles são, também, ávidos consumidores de inúmeras mídias e se acham obrigados em dizer o que pensam, sobre o que lêem. O nível de consciência entre eles é muito diversificado, indo desde a militância, passando pela arrogância, a superficialidade e a vontade legítima de retificar e contribuir para o debate.
Existem os ‘profissionais’, e os que colaboram eventualmente em algum assunto ou emoção que lhes são caros. É verdade, que alguns estão ali apenas para dizer não, para reafirmar diuturnamente suas discordâncias. Outros escrevem para complementar ou apenas para reafirmar suas concordâncias parciais ou totais com o que leram. Muitos lêem e alguns, apenas, comentam, e isto é um problema a ser analisado. Os comentaristas podem ser entendidos como co-redatores das notícias que vemos nas versões eletrônicas dos jornalões, ou como críticos dos artigos de fundo da imprensa nanica, transformada em bits. Por que assim se comportam?
Os signos de seus comportamentos remetem diretamente a necessidade de novos canais democráticos, da reconstrução da velha Ágora. O que se vê é que os canais disponíveis são poucos e ineficientes. Esta aceitação dos leitores internéticos de participar, mesmo que nem sempre de modo polido e educado, demonstra como se está longe da construção de uma verdadeira pólis democrática. Nesta, a troca civilizada de argumentos permitiria que se compreendessem melhor os fenômenos da contemporaneidade.
Não se acredita que a Internet seja o lócus único desta democratização da informação e da argumentação. Ela é apenas um meio de comunicação, poderoso, sem dúvida, mas, como os demais, cheio de limitações. Pensa-se que a Ágora real é a das ruas, dos locais de trabalho e de estudo, a do diálogo direto entre as pessoas. Os parlamentos, nos três níveis da governabilidade, estão muito longe de oferecer às pessoas os meios necessários para que troquem informações e argumentos. Sem esta troca, a democracia não tem chance de se consubstanciar entre as maiorias da população.
A imprensa nanica, sobretudo a veiculada pela Internet, preenche alguns alvéolos dos pulmões da democracia formal brasileira e do mundo contemporâneo. Entretanto, não é capaz de fazer que funcionem à plena capacidade. Mesmo que aumentemos cada vez mais a audiência, algo ficará faltando. Isto tem que ser buscado em toda parte da vida real, onde exista alguém pronto para falar, escutar, debater e concluir. Os que escrevem artigos desejam, se possível, ajudar nos debates, desde uma simples conversa até uma manifestação pública mais efetiva.
Luís Carlos Lopes é professor.’
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