Como o papel, a tela da internet aceita qualquer coisa. Aqui e ali deparamos com asneiras, falsidades, absurdos e abusos criminosos, tanto por parte de quem produz como de quem comenta – cheio de razão ou, ao menos, de intenção. Assim é, e este é só o início. Não se deve, contudo, culpar o sofá. Que fique entre nós: não é ele o autor do adultério. Da mesma forma, apesar da histeria dos que se apegam ao barco e se alheiam à travessia, a internet não é um fim, mas um meio, e isto também ajuda a explicar o que virá a seguir.
Tem-se procurado, neste espaço, demonstrar as incongruências entre a tese e a realidade do webjornalismo supostamente produzido pelos leigos que pululam pela rede, incentivados por sites que aliam o útil (ampliação gratuita da cobertura) ao útil (mais audiência e dinheiro). Pode até ser agradável para quem fatura e para quem envia uma foto ou outra informação. Nada contra. Desde que, nas publicações jornalísticas virtuais, tudo seja verificado por quem entende do assunto. Ou seja, por um jornalista. Que o boi seja chamado de boi, e o pasto, de pasto. Antes que se apertem as teclas, antes que a vertigem se apóie em um dito paranóico qualquer: não se recomenda a confusão entre o corporativismo e os raios solares do bom senso.
Suposta armação
Vez por outra, nessa ânsia de veicular, veicular, veicular, e veicular mais e mais e muito mais, a pressa abalroa a perfeição, e o cercadinho vem abaixo. Na cobertura da mais recente tragédia de Congonhas, o UOL sucumbiu à esparrela de um internauta criativo e sem escrúpulos. O indivíduo (ele? ela? isso?) produzira uma fotomontagem, inventara uma vítima ‘que se atirara’ da janela do prédio da TAM Express – como se ainda precisássemos, na ficção, de um suprimento para agigantar a morbidez da vida real.
Ora, mas isso só acontece quando há um internauta na história? Sabemos que não. Por vezes é obra de profissional. Atente para esta notícia da versão online do Estado de S.Paulo:
‘A agência de notícias Reuters foi forçada a admitir que uma imagem divulgada na semana passada que supostamente mostrava submarinos russos no leito do Oceano Ártico eram na verdade trechos do filme Titanic, revelou o jornal britânico The Guardian nesta sexta-feira, 10. Um garoto de 13 anos foi o responsável por desvendar o erro. As fotos foram reproduzidas em meios de comunicação de todo o planeta – inclusive no estadao.com.br – para ilustrar reportagens sobre a colocação de uma bandeira russa no leito marinho do pólo norte, no último dia 2’.
De acordo com o portal, citando informação do diário inglês, ‘a Reuters admitiu ter captado as imagens a partir de uma reportagem do canal estatal russo RTR, identificando-as erroneamente como imagens do Ártico. A RTR também usou as imagens para ilustrar matérias sobre a expedição no Pólo Norte, mas as teria veiculado como material de arquivo. As imagens foram transmitidas inicialmente pela RTR quando os russos encontravam-se ainda a várias horas de distância do Pólo Norte’.
A notícia da ‘barriga’ ganhou o mundo. O trecho traduzido a seguir é da versão digital do diário espanhol El Correo, de Bilbao, referindo-se a um jornal finlandês:
‘Assim, enquanto a Rússia continua comemorando com euforia o seu sucesso, o diário diz ter descoberto a trapaça e declara que `tudo não passou de uma jogada propagandística e política em seu mais alto grau´’.
O jornal basco desconfia de uma suposta armação do governo russo: ‘Moscou recorreu ao truque para sair na frente na guerra pela reivindicação da propriedade da região, rica em hidrocarbonetos’, publicou em subtítulo, enquanto o principal destacava: ‘Rússia usou imagens do filme `Titanic´ como prova de sua expedição ao fundo do Ártico’.
‘Engano russo?’, perguntava-se, em uma chamada, o madrilenho El País.
‘Russos, mentiras e videotape’
Por aqui, dias antes a Folha Online apresentara a dimensão dos interesses em disputa:
‘Os russos estão liderando uma nova `corrida pelo ouro´ no norte do planeta, com corajosas tentativas de tomar controle de petróleo, gás, minerais em grandes partes do Oceano Ártico até o Pólo Norte. O mais famoso explorador da Rússia, Artur Chilingarov, liderou a expedição para plantar a bandeira russa no leito do oceano, imediatamente abaixo do pólo. `O Ártico é russo´, disse Chilingarov. `Nós precisamos provar que o Pólo Norte é uma extensão da plataforma do litoral russo´’.
Desta vez, parece que se trata de mais uma obra de ficção, um Titanic 29 1/5 com argumento de Mel Brooks, livremente inspirado em um certo Russos, mentiras e videotape.
Pode-se dizer que faltou à Reuters checar a veracidade da imagem. Como fazê-lo, então? Mandar uma equipe da agência ao fundo do mar? Exigir uma declaração da TV russa com firma reconhecida em um cartório da Sibéria? Assistir a todos os filmes náuticos da história do cinema? Recorrer a um especialista em oceanos e em submarinos, ou, talvez, à CIA e ao MI5?
Neste episódio, a exemplo do que aconteceu com o UOL, contou-se, também tarde demais, com a observação atenta de um leitor: um menino de apenas 13 anos. Idade que no tempo em que vivemos deve equivaler a uns 62.
Por último, e não menos importante: como no dito dos bois e das vacas, quando a agência erra, o outro vai atrás. Não à toa, o Estadão literalmente acusou o golpe. Uma agência de notícias deve a sua sobrevivência à credibilidade das suas informações. Sob este prisma (sem trocadilho), a notícia do portal do Grupo Estado parece ser um aviso, ao menos a queixa de quem acabou embarcando contra a vontade em um submarino furado:
‘O incidente soma-se a um embaraço sofrido pela agência em agosto do ano passado, quando publicou imagens manipuladas de um bombardeio israelense no Líbano. Depois da gafe, destaca o Guardian, a Reuters prometeu ampliar o controle sobre o material fotográfico transmitido pela agência’.
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Jornalista