Em dezembro de 1968, a partir do Ato Institucional nº 5, o matutino carioca Correio da Manhã protagonizaria o último capítulo de uma das mais dramáticas páginas da história da imprensa brasileira: a desesperada batalha que travou contra a ditadura, até sua derrocada final, seis anos depois.
O jornal, que, quatro anos antes, tivera papel ativo no processo que levou à queda de João Goulart, depois de ter apoiado, constitucionalmente, sua posse, foi, por ironia, o alvo mais visado pelo novo regime, que só depois mostraria sua verdadeira face de terror. Contra o qual, desmascarado o engodo, o jornal se voltaria nos dias imediatos.
Uma vez escancarada, a ditadura concentrou suas baterias na figura de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, viúva em segundas núpcias e herdeira do proprietário do Correio da Manhã, Paulo Bittencourt. Niomar, uma baiana de estatura mediana, aparentemente frágil, escondia no traço suave do rosto uma mulher de vontade férrea e voluntariosa.
Força inquebrantável
A 7 de dezembro, poucos dias antes da edição do AI-5, marcando o momento mais truculento do novo regime, a sucursal do jornal na Avenida Rio Branco foi destruída por uma potente bomba. O jornal apontou na primeira página o responsável direto pelo ato terrorista, ‘o presidente da República, marechal Artur da Costa e Silva’.
A censura prévia instituída pelo AI-5 atingiu todos os jornais. O mais visado, por sua posição de enfrentamento, seria o Correio da Manhã. Chegou a ter diariamente 10 censores na redação. Apesar das ‘medidas corretivas’ a que era submetido seguidamente, seguiu quanto pôde denunciando a tortura e as arbitrariedades do poder.
Na noite do AI-5, agentes do Dops fortemente armados invadiram a redação do Correio da Manhã, truculência que se repetiria outras vezes. Interditado até o início de janeiro de 1969, recusando a autocensura, foi submetido a rigorosa censura prévia. Niomar teve várias prisões preventivas decretadas, ora pela Auditoria do Exército, ora pela da Marinha. Cumpriu prisão domiciliar, prisão hospitalar, adoeceu gravemente na prisão e percorreu um penoso roteiro em órgãos policiais e estabelecimentos penais. Incontáveis foram as vezes em que teve de comparecer à Polícia Federal e ao Dops, para prestar esclarecimentos. Sua força era inquebrantável. A cada golpe, começava tudo de novo.
Ditaduras não são eternas
Pressionados pelos militares, os bancos cortaram o crédito, os anunciantes abandonaram o jornal. Desfigurado e sem forças mais para resistir, pediu concordata em março de 1969. Meses depois, numa última tentativa de sobrevivência, foi arrendado por cinco anos por um grupo de empreiteiros. Uma cláusula restritiva estabelecia sua devolução, saneado, à proprietária, no fim do contrato.
Quando isto ocorreu, o jornal estava irreconhecível. Niomar se recusou a receber os destroços daquele que um dia foi um dos mais importantes jornais do país. Todas as portas estavam fechadas. Era o fim de uma aventura que foi qualificada de suicida. O Correio da Manhã deixou de circular no dia 7 de julho de 1974, seis anos após o início da era de chumbo. Morreu de inanição, como um indigente à margem da estrada. Sem expediente no cabeçalho, sem uma palavra de despedida, sem uma explicação.
Uma questão permanece em suspenso: por que, ao contrário de outros jornais, alguns submetidos a tratamento semelhante, o Correio da Manhã não conseguiu sobreviver? Certamente que os fatores que o conduziram à derrota foram determinantes. Mas, seriam únicos? Não haveria outra saída? Teria sido possível, dentro da lógica (ou falta de lógica dos militares), sem perder a dignidade nem violentar princípios morais, continuar a luta, administrando sem confronto e com as armas possíveis a ditadura militar? Como o próprio jornal fez em outros momentos críticos de sua luta pelas liberdades. Ou Niomar Moniz Sodré Bittencourt teria preferido entregar-se à auto-imolação a ter que ceder um passo em nome da sobrevivência do jornal? E, por fim, até que ponto vai sua responsabilidade pessoal no desenlace final?
Como se viu 21 anos depois, e o Correio da Manhã já o havia saboreado antes, as ditaduras não são eternas.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ