Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alberto Dines

‘Golpe ou contragolpe, quartelada ou revolução, parte da Guerra Fria mundial ou bogotazo latino-americano? A derrubada de João Goulart completa o seu 40º aniversário e apesar do empenho rememorativo só produziu uma constatação – foram os 21 anos mais negros e mais violentos da nossa história.

De concreto, as vítimas e a dor, o resto é controvérsia. E não poderia ser diferente: se a historiografia fosse conclusiva e indubitável, não necessitaríamos de historiógrafos. É razoável a tese de que o confronto de 1964 resultou de uma descrença generalizada na democracia. Ainda não apareceu análise alternativa mais sucinta e clara. Não obstante o fervor dos dois lados em defesa das respectivas ‘legalidades’, a disputa que se trava até hoje entre os herdeiros e descendentes das duas correntes evidencia uma crise de valores ainda não sanada.

A idéia republicana, embora ultimamente badalada, ainda não está suficientemente assimilada. A República começou com um equívoco – proclamada por uma facção de militares autocráticos – e continua ambígua, achincalhada e incompreendida.

A melhor prova desta persistente incompreensão ou disfunção republicana é a crise que começou em 13 de fevereiro e, na melhor das hipóteses, parece destinada a espraiar-se até meados do ano. Antes que afoitos tentem forçar identidades ou relações entre 1964 e 2004 é bom que se diga que além do dígito final, nada, absolutamente nada, assemelha aquela fragmentação nuclear, institucional (fruto de uma sucessão de traumas) a este surto galopante de estultices políticas.

Esquecido do seu mandato e da sua majestade, o Executivo apequena-se. Levou um susto e mostrou o tamanho do susto. Permitiu que uma grave revelação de improbidade numa das dependências do palácio presidencial ganhasse dimensão gravíssima e contaminasse o próprio Estado. Gagueja há seis semanas e está permitindo que uma crise localizada converta-se numa crise de governo.

Ao associar-se ao carbonário Leonel Brizola, a oposição mostra-se à altura, igualmente tosca, sem inspiração, incapaz de impor-se como alternativa. O ex-governador gaúcho merece todo o respeito pessoal pelos 60 anos de vida política mas se até 1961 (quando comandou a cruzada pela posse de Jango), seus feitos são meritórios, daí para frente foram desastrosos. Sua ambição desmedida e seu fundamentalismo político encurralaram o cunhado-presidente levando-o a uma radicalização que sua natureza tíbia e medíocre organicamente rejeitava.

Que o PDT por vocação do seu líder queira atear fogo ao circo é problema do seu eleitorado, mas o eleitorado do PSDB ou do PFL dificilmente aceitará esta parceria oportunista, míope e irresponsável.

Lula não tem nada de Jango mas seu improviso diante de um grupo de músicos hip-hop atribuindo a culpa da atual crise aos ‘conservadores’ é de um primarismo ideológico exemplar. Dito por um Roberto Requião ainda imerso na era dos flinstones não causaria surpresas mas na boca de um Chefe de Estado moderno é preocupante.

Engessado pelo conservadorismo está o governo, quem não quer mexer ou mexer-se é o governo. A passividade com que o Estado enfrenta há duas semanas a insubordinação da Polícia Federal encarregada de defendê-lo e só agora acordou para declará-la ‘inaceitável’ reflete um comportamento que beira à paralisia.

O processo político e o processo decisório não podem desmoralizar-se sob pena de bagunçar ritos e procedimentos que os tornam merecedores do respeito da sociedade. É compreensível o desconforto do PT quando o seu atributo ético foi colocado sob suspeita. Mas a incapacidade do governo do PT para perceber que estamos no mesmo barco é ofensiva. Ao invés de buscar solidariedade para reencontrar a esperança, aferra-se às más companhias não muito diferentes daquelas que o desgraçaram.

Anunciar o gasto de oito milhões em publicidade para mostrar que as coisas estão andando e dias depois capitular às exigências dos aliados liberando mais 1,5 bilhão para emendas dos parlamentares não é apenas perdulário, é a consagração do fisiologismo. Desrespeito à função fiscalizadora do Legislativo, desdém pela imagem da República.’



Mino Carta

‘O golpe de 64 e outras tragédias’, copyright Carta Capital, 29/03/04

‘Dizia Hannah Arendt: ‘não há esperança de sobrevivência humana sem homens dispostos a dizer o que acontece, e que acontece por que é’. Brilha em uma das páginas do ensaio intitulado Entre o Passado e o Futuro, que li no começo da década de 70 e me marcou muito.

Tempo de ditadura e de censura. E da descoberta da mais profunda serventia da profissão jornalística, que até então tentava praticar com rigor profissional e muito ceticismo. Senti então que a possibilidade de deitar no papel, mesmo com meias palavras, e até nas entrelinhas, informação capaz, algum dia, de aproveitar ao trabalho do historiador, conferia à profissão valor extraordinário. E passei a repetir a frase de Hannah Arendt igual a jaculatória, de viva-voz ou ao cair das teclas da Olivetti.

Um jornalista famoso comentou que todo o meu saber se resumia nas palavras de Hannah Arendt, e outro, do mesmo porte, garantiu que a segunda parte da citação – ‘e que acontece por que é’ – era de minha exclusiva lavra, pura invenção, até porque despida de sentido lógico. Ignorava o entendimento einsteiniano da senhora Arendt. Ou seja, a concomitância entre passado, presente e futuro, imperscrutável para o ser humano, ainda que inexoravelmente real. Donde: o que acontece é.

Deixei para lá, e isso, de fato, não tem importância. Tem, isto sim, todo e qualquer esforço para preservar a memória por parte do bicho precário que somos nós. A memória daquilo que é, passível porém de esquecimento por parte de quem não está habilitado a perceber a inexistência do tempo.

Hannah Arendt afirmava também que a mentira e a omissão por parte dos comunicadores condena a verdade factual ao naufrágio definitivo, com danos irreparáveis para a inteligência e a consciência humanas. É digno, justo e salutar que lembremos, 40 anos depois, o golpe de 1964. No fundo, contudo, todo dia é dia de aniversário. O sol nasce com a chance, porventura aproveitada, de lembrar a grande tragédia de 40 anos atrás. A maior tragédia.

Neste espaço, na semana passada, permitia-me declinar a opinião de que continuamos a sofrer os efeitos do golpe. Em todos os planos, materiais e morais. Não careço de provas, e uma é posterior àquelas minhas linhas recentes. Está na própria reação dos jornalões e da Globo à entrevista do ex-chefe do FBI no Brasil Carlos Costa, dada a Bob Fernandes e publicada em CartaCapital como primeiro capítulo de suplemento comemorativo do golpe (não perca, logo adiante, o segundo capítulo).

Nestes dias, estudantes de Jornalismo procuram conhecer os comportamentos da mídia durante a ditadura. Alguém pergunta quem foi e quem não foi censurado. Nesta segunda categoria, Globo, Folhas, Jornal do Brasil nunca foram censurados in loco. E as listas dos assuntos proibidos emanadas de Brasília pelo telex ou pelo telefone? Respondo que para várias redações eram absolutamente inúteis. Por que interessaria aos órgãos da chamada ‘grande’ imprensa, e dos jornais da mídia eletrônica, divulgar, por exemplo, a notícia da guerrilha do Araguaia?

De lá para cá, o que mudou, de certos ângulos e certas situações? Por que interessaria ecoar as afirmações de Carlos Costa? É da tradição: o que convém ao País não convém, quase sempre, aos donos do poder.

Convém comprovar a penúria da Polícia Federal, quenem sequer tem condições de pagar a conta de luz e de água, e por isso, inclusive, fica exposta à sedução dos dólares? Convém a presença na chefia da PF de Paulo Lacerda, figura moralmente e profissionalmente inatacável, ousado a ponto de montar operações como a Anaconda e a Gafanhoto, e de deflagrar um inquérito sobre o propinoduto dos tempos Collor e PC Farias, capaz de indiciar 69 empresários e 100 empresas?

E convém reconhecer que Carlos Costa está a prestar um grande serviço ao Brasil e, se quiserem os homens de boa vontade, ao seu próprio país? É esta a mídia que hoje está quebrada, por obra, inclusive, das suas apostas erradas e da sua vocação perdulária. Ou por outra, de sua própria incompetência. Os homens acham que estão em Nova York. Agora esperam, como de hábito, pelo salva-vidas governista.

Na quarta 24, em Brasília, deu-se o primeiro confronto entre os principais executivos das tevês, Senado e BNDES. Tema: a ajuda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. As empresas de mídia acumulam rombo de R$ 10 bilhões, segundo estudo encaminhado ao banco pela Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner).

O BNDES já avisou: pretende ajudar com R$ 4 bilhões. O dinheiro, segundo Darc Costa, vice-presidente do banco, seria dividido em três linhas. Uma destinada a investimentos (o principal apelo é a necessidade de as emissoras de tevê se prepararem para a tevê digital), outra para a aquisição de papel jornal, uma terceira destinada ao equacionamento das dívidas do setor. Tal é o ponto da discórdia, que marcou o racha entre dois grupos principais.

SBT, RedeTV! e Record são contrárias à ajuda porque acreditam ser uma forma de beneficiar a Globo, principal adversária (dona de 50% da audiência e 80% da verba publicitária, segundo as próprias empresas) e cuja dívida é de US$ 1,9 bilhão. A Bandeirantes não se opõe à possibilidade de o dinheiro do BNDES ser usado para pagar papagaios, como quer a Globo. Por enquanto, apesar de o estudo enviado ao banco no fim do ano passado representar também jornais, rádios e revistas, apenas as tevês puderam participar do debate.

Clara a inversão de lugares e temas. A ajuda financeira à mídia, que deveria ser discutida dentro do BNDES, como acontece quando se fala do socorro a outros setores, foi direcionada ao Senado. O Legislativo, que teria de participar das discussões sobre a falta de uma política para o setor, não toca no assunto. O Poder Executivo resume sua participação na escolha a toque de caixa do sistema para a tevê digital. Ou no socorro da própria imagem. Explica-se: a mídia dispara contra as mancadas do governo e o governo abre os cofres para melhorar a blindagem.

Ao sair da reunião de Brasília, Dennis Munhoz, presidente da Record, declarou: ‘Tem muita gente achando que o empréstimo vai resolver o problema da radiodifusão. Primeiro é preciso definir uma política para o setor. Do contrário, daqui a um, dois anos, se não houver uma melhora na economia e no mercado publicitário, o problema será o mesmo enfrentado hoje’.

A seu modo, Munhoz fez mira certa. Conta a história de desmandos e injustiças, que a mídia brasileira sempre serviu ao poder. Sem surpresas. Ela é um dos rostos do próprio. Depende do Estado e o Estado da mídia.

E eis que surge a oportunidade de desfazer a relação maligna. E de aproximar o Brasil e seus meios de comunicação da contemporaneidade do mundo. Que se ajude quem merece, esta é a questão. Mas que se estabeleça, via Congresso, uma lei da mídia, para limitar os poderes de cada um e definir as regras da competição justa. Aquela que nunca houve.’



Adriana Souza Silva / Mino Carta

‘‘A mídia implorava pela intervenção militar’’, copyright AOL Brasil (www.aol.com.br), 24/03/04

‘Ele é referência para a imprensa brasileira. Aos 70 anos, o jornalista Mino Carta fez por merecer esta definição. Criou o Jornal da Tarde, em São Paulo, e as revistas Veja, Quatro Rodas, IstoÉ e, sua menina dos olhos, a Carta Capital, que em junho completará 10 anos. Vem daí a legitimidade para bater duro na mídia brasileira. ‘É a pior do mundo’, costuma repetir. Faz pose de herói da resistência, sobretudo quando revela que até hoje usa a boa e velha Olivetti para escrever. E se você o elogia pela fidelidade à maquina antiga, dispara: ‘Não sei nem ligar um computador, sou um pobre velhinho’.

Na semana em que o Golpe Militar faz 40 anos, a reportagem da AOL correu atrás desse ‘pobre velhinho’ – a bem da verdade, um charmoso italiano de Gênova. A censura no período militar foi um tema que despertou sua ironia machadiana. A entrevista aconteceu na redação da Carta Capital, no bairro paulistano Cerqueira César. Aos donos da Editora Abril e da Folha de São Paulo sobraram críticas ferinas. Mino Carta diz que quem sofreu com a censura foram os jornais alternativos. Da grande imprensa – eis um termo que ele detesta -, apenas os jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde tiveram de substituir artigos proibidos por poemas de Camões e receitas de bolo, expediente adotado na época para alertar os leitores dos expurgos de texto indicados pelos censores. Assim mesmo, segundo ele, porque havia uma briga interna entre os militares e a família Mesquita, dona do jornal, por cargos do regime. ‘Os editoriais da Folha, de O Globo e do Jornal do Brasil clamavam pela intervenção’, afirma.

Nascido em data incerta – entre 6 de setembro de 1933 e 6 de fevereiro de 1934 -, Demétrio Carta chegou ao Brasil aos 12 anos de idade. Começou no jornalismo em 1950, cobrindo a Copa do Mundo como correspondente de um jornal romano Il Messaggero. Instalou-se de vez no Brasil em 1960, ano em que fundou a revista Quatro Rodas. As décadas seguintes seriam dedicadas ao jornalismo. A estréia como escritor foi em 2000, com o romance O castelo de âmbar (Editora Record) no qual destila o sarcasmo genovês emprestado ao personagem Mercúcio Parla, o pseudônimo escolhido para contar suas andanças pela profissão e sua relação com o poder. Na entrevista que segue, Mino Carta passa em revista o período em que o Brasil ficou na mãos dos militares, revela sua experiência com a censura e detalhes sobre personagens da época. Confira:

AOL – Como os jornais trataram a notícia do Golpe Militar?

Mino Carta – Golpe?! Imagina se alguém iria usar este termo. Os jornais sempre falaram em Revolução. Até hoje, muita gente ainda diz que foi uma ‘Revolução’. O uso indiscriminado desta palavra é uma coisa que me dói. Tenho muito respeito pelas palavras, acho que cada uma tem seu peso, seu valor… Mas, voltando a sua pergunta, a mídia brasileira, desde aquela época, servia ao poder. Digo que o Brasil tem a pior mídia do mundo. Ela é muito ruim, incompetente, priva pela ignorância, pela vulgaridade, pelo distanciamento e pela falta de responsabilidade. A mídia vinha invocando o golpe há muito tempo. Isso é o que mais me lembro dos editoriais de O Globo, do Estadão, do Jornal do Brasil. Nesse tempo, a Folha de São Paulo não tinha o peso que adquiriu depois. Mas esses três jornais soltavam editoriais candentes, implorando a intervenção militar para impedir o caos. Era o caos que estava às portas!

AOL – Então, o golpe era previsível?

Carta – Era claro que o golpe estava em movimento e logo também foi claro que não haveria qualquer tipo de resistência, a não ser uma ou outra coisa isolada que não adiantaria, naturalmente, para coisa alguma. Quando recebi essa notícia – nesse período, eu dirigia a redação da revista Quatro Rodas – fiquei estarrecido. Mas, ao mesmo tempo, não fui surpreendido. Aquilo estava engatilhado há muito tempo. De resto, há o fato de que essa tragédia teve um lado – não diria cômico porque foi uma tragédia baseada na costumeira hipocrisia e prepotência da elite brasileira, insuflada pelos Estados Unidos -, mas eu posso dizer que houve um lado irônico. Tudo foi feito em nome de uma ameaça, do comunismo, que não existia. O Brasil estava em processo de industrialização. E isso traria certas conseqüências inevitáveis, como por exemplo, o surgimento de sindicatos fortes e o nascimento de um partido de esquerda de verdade, capaz de chegar ao povo, ao contrário do que a esquerda brasileira tem conseguido até hoje. Tudo isso, que iria acontecer mais cedo ou mais tarde, representou, naquele momento, uma justificativa para aqueles que queriam dar o golpe. Aquilo era, evidentemente, previsível. Até porque não houve qualquer tipo de resistência, não foi derramada uma única e escassa gota de sangue pelas calçadas brasileiras.

AOL – E se tivesse havido sangue?

Carta – Se tivesse havido sangue, teríamos a prova de que havia alguma coisa encaminhada, que o Brasil tinha uma resistência organizada. O fato de não ter havido reação alguma prova, de uma forma clamorosa, que não havia nada que justificasse o golpe. Na verdade, havia sim um estudante que sonhava com um Brasil melhor, um ou outro intelectual que achava que a coisa poderia ter tomado um outro rumo e até alguns políticos dignos que gostariam de viver em um País mais justo socialmente.

AOL – O senhor diz que a mídia implorava pela intervenção militar. Mas os donos dos jornais citados pelo senhor falam que foram perseguidos.

Carta – Eles falam isso a custo da destruição da memória. Primeiro, destrói-se a memória. Esse é o processo. Em cima da escuridão, inventa-se qualquer coisa, e os leitores engolem tranqüilamente porque o trabalho é eficaz. A destruição da memória é algo que aqui se pratica com extrema habilidade. Assim como o chute no cadáver, a destruição da memória é um dos esportes nativos do Brasil, praticado com extrema competência. Em cima da destruição da memória, alguns jornais inventam que sofreram censura. O Jornal do Brasil nunca foi censurado. A Folha de São Paulo nunca foi censurada.

AOL – Nunca?

Carta – A Folha de São Paulo não só nunca foi censurada, como emprestava a sua C-14 [carro tipo perua, usado para transportar o jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operação Bandeirante]. Isso está mais do que provado. É uma das obras-primas da Folha, porque o senhor Caldeira [Carlos Caldeira Filho], que era sócio do senhor Frias [Octavio Frias de Oliveira], tinha relações muito íntimas com os militares. E hoje você vê esses anúncios da Folha – o jornal desse menino idiota chamado Otavinho [Otavio Frias Filho] – esses anúncios contam de um jeito que parece que a Folha, nos anos de chumbo, sofreu muito, mas não sofreu nada. Quando houve uma mínima pressão, o sr. Frias afastou o Cláudio Abramo da direção do jornal. Digo que foi a ‘mínima pressão’ porque o sr. Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis, na sucessão do general Geisel. A Folha estava envolvida com o pior, apoiava o Frota [general Sílvio Frota, ministro do Exército no governo Geisel]. O Claudio Abramo foi afastado por isso. O jornal O Globo também não foi censurado. Isso é uma piada. Mas o Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde, sim, esses dois foram censurados. Mas a censura veio porque havia uma briga interna deles.

AOL – Como assim?

Carta – Se houve um jornal que apoiou o golpe, foi O Estado de São Paulo. O Estado, assim como o Carlos Lacerda, que acabou caçado três anos depois que a ‘Redentora’ se abateu pelo País. Essa gente aspirava a um papel que não tiveram. Então, começaram a brigar entre eles. O jornal Estado tinha uma profunda antipatia pelo Castello Branco porque ele não aceitou as sugestões do jornal na composição de seu primeiro governo. E aí começou essa briga interna que desaguou numa censura que era praticada na redação do jornal. O Estado tinha de publicar versos de Camões nos trechos das reportagens retiradas na redação. E no Jornal da Tarde eles tinham de colocar receitas de bolo nesses espaços.

AOL – Quem foi, de fato, censurado?

Carta – A revista Veja sofreu uma censura duríssima. Começou depois de 1969, depois de várias apreensões em bancas. A censura só acabou quando saí da revista [Mino Carta criou e dirigiu a revista Veja de setembro de 1968 até 1976].

AOL – A Veja nasceu três meses antes do AI-5. Não havia esse receio?

Carta – Os senhores Civita não entendiam nada de Brasil. Aliás, acho que continuam não entendendo. O rapaz Roberto Civita, que é um outro idiota… Entre o Otavio e o Roberto é um páreo duro para ver quem é o mais imbecil… Mas, de qualquer maneira, a revista foi censurada duramente, por muitos anos até 1976. E informo que, a partir de um certo momento, a partir de abril de 1974, ela passou a ser censurada nas dependências da Polícia Federal. Até então, a Veja tinha sido censurada na redação. Os censores iam até lá e liam. Mas quando entrou a Polícia Federal, a Veja passou a ser levada à casa dos censores.

AOL – E como foi aquele episódio em que o senhor teve de desligar os telefones da revista?

Carta – Nós iríamos sair com uma matéria sobre tortura. Era uma grande matéria comandada pela equipe de Raimundo Pereira. A equipe levantou mais de 150 casos de tortura e havia três casos contados em detalhe. Uma semana antes, nós tínhamos saído com uma capa sobre a posse do Médici (1969-1974) dizendo que ele não queria tortura. Fizemos uma puxação de saco com ele e, é lógico, já sabendo que viria em seguida a matéria com os casos de tortura. Queríamos só preparar o caminho. Mas aconteceu que a imprensa da época foi atrás da capa da Veja e começaram a dizer, durante toda aquela semana, que o Médici realmente não queria tortura. Por causa disso, saiu uma ordem, numa quinta-feira, de que o regime militar proibia qualquer referência ao assunto. E na sexta-feira [risos], eu mandei desligar os telefones da redação para não chegar essa ordem até nós. A revista saiu, mas foi recolhida nas bancas. Naquele tempo, não havia assinaturas. Ela ia para a banca e a censura passava recolhendo.

AOL – Como foi sua saída da Veja?

Carta – Havia uma pressão muito grande dos militares para que eu saísse. E a Editora Abril tinha uma dívida fora do Brasil, de 50 milhões de dólares. Eles pediram um empréstimo à Caixa Econômica Federal, mas era um empréstimo dentro da normalidade, eles ofereceram garantias suficientes. Só que era um pedido, evidentemente, que vinha de uma editora e, portanto, tinha conotações políticas. A Caixa Econômica aprovou o pedido, mas precisava do aval do ministro da Fazenda. Mas o ministro da Fazenda falou que precisava da permissão do ministro da Justiça e a coisa acabou na mão do Falcão [Armando Falcão, ministro da Justiça]. E o Falcão falou: ‘Nós vamos dar dinheiro para aqueles inimigos do governo, que publicam a revista Veja?’ Então começou essa pressão.

AOL – E por isso Roberto Civita despediu o senhor?

Carta – Não, eu é que fui ao Civita. Além de dirigir a revista, eu era do conselho editorial da Abril, fazia parte do ‘board’, como diziam eles. Bom, participava das reuniões e sabia de tudo. Nesta altura, fiquei penalizado com a situação deles. Em julho de 1975, falei para o Civita: ‘Eu saio. Durante dois ou três meses, fico por trás do pano, até as coisas ficarem bem. Depois, posso chefiar as sucursais da editora Abril na Europa. Para mim está ótimo’.

AOL – E qual foi a resposta?

Carta – Ele não quis. Então, depois de uma semana, voltei a falar com ele: ‘Bem, se é para eu ficar aqui na Veja, vou continuar fazendo meu papel. Não vou ceder [à censura]’. Ele respondeu que tudo bem. Então, como primeira medida, eu chamei o Plínio Marcos para fazer uma coluna de esportes, na qual você pode imaginar o que ele falava. É isso. Depois ofereci emprego a uma pessoa que fazia parte do grupo do Vladimir Herzog. E voltei a falar com o Civita, que me perguntou o porquê de eu não tirar férias. Eu disse: ‘Está bem, eu tiro’. E durante as minhas férias, eles se animaram. Quando eu voltei, o Civita me disse que eu tinha de mandar embora o Plínio Marcos. Eu respondi: ‘Não mando. Se tiver de mandar embora o Plínio Marcos, você manda me manda embora junto com o Plínio’. E ficou aquele ‘mando’, ‘não mando’ até que eu saí.

AOL – E com o Millôr Fernandes, foi a mesma coisa?

Carta – Ah, isso foi antes. Na época do Geisel, eu tinha negociado com o Falcão o fim da censura. Disse a eles: ‘Vocês querem fazer a abertura lenta, gradual, porém segura, então, tira a censura’. O plano deles, teoricamente, era esse. O Golbery [do Couto e Silva] me disse isso. E, de fato, quatro dias depois que o Geisel tinha tomado posse, o Falcão me chamou até Brasília e disse que a censura sairia. Eu disse: ‘Tudo bem, mas isso não me implica nenhum tipo de compromisso?’ Ele respondeu que não. Eu voltei e já saímos com uma capa sobre os exilados. Isso causou certos problemas. Depois trouxemos uma matéria sobre os 10 anos do Golpe, o que nos trouxe mais problemas ainda. Até então não havia a censura. Mas aí veio uma charge do Millôr, que tinha uma seção na Veja. A censura voltou com tudo e, a partir daquele momento, veio aquela época a qual me referi antes, de precisar mandar a matéria para a Polícia Federal.

AOL – O Roberto Civita chegou a mandar o Millôr Fernades embora por conta disso?

Carta – Não. Imagine: ele ofereceu a cabeça do Millôr Fernandes ao Golbery. O Golbery disse a ele: ‘Não. Eu não estou te pedindo isso’. Esse era o Roberto. O Golbery não conhecia que… Isso eu contei muito no meu primeiro livro [O castelo de âmbar, Editora Record]. Está lá, está tudo lá. E nunca foi desmentido porque não há como desmentir. Aquilo lá é a sacrossanta verdade factual.

AOL – Uma das coisas que o sr. conta no livro é de que foi o general Golbery quem o avisou que o ministro da Justiça Silvio Frota iria cair no dia 12 de outubro de 1977. O sr. já conseguiu descobrir o porquê desta data?

Carta – Não. Até hoje nunca descobri. Mas só voltando à questão da censura, isso é um assunto que sempre mexe comigo. Pior do que Veja, foi a situação dos alternativos. Veja certamente foi censurada de uma forma duríssima. Pior ainda foi com os alternativos. Os jornais alternativos, digo, o Opinião – aliás, naquele tempo já era o Movimento -, o Pasquim, o jornal do D. Paulo (Evaristo Arns), da Cúria de São Paulo, enfim… Todo esse tipo de publicação tinha de mandar o material para Brasília. Nós, na Veja, mandávamos para a rua Xavier de Toledo, de segunda à sexta-feira, e para casa dos censores, aos sábados. Mas os donos dos jornais alternativos tinham de mandar para Brasília. Todo o material. Então, alguém pegava uma pasta, levava até Brasília, entregava. Aí, os caras faziam mil sacanagens, devolviam o material e alguém colocava no avião e voltava para o Rio, ou para São Paulo. Era ainda pior. Eu não conheço censura deste tipo, na história do século passado, em nenhum lugar assim. No tempo do fascismo e do nazismo não era assim. Os censores iam para as redações.

AOL – A impressão que dá é que, apesar de toda a censura, naquele tempo o jornalismo era mais crítico.

Carta – Sem dúvida. A busca da entrelinha era real. Havia muitos jornalistas que tentavam enfiar nas entrelinhas algumas coisas. Às vezes, era algo que só a mãe dele percebia, mas não tem importância. Havia pelo menos esse esforço. Diria que era um jornalismo melhor do que hoje.

AOL – O sr. fala como se tivesse perdido o idealismo daquela época.

Carta – Não. Eu sou muito otimista na ação. Tanto que temos aqui a melhor redação que eu dirigi na vida. Sou otimista na ação, sou otimista em todas as bolas, mas não deixo de ser muito cético em relação ao País. Porque há uma sociedade ruim, má e um povo resignado. Então, é difícil você tirar disso alguma esperança para o atual futuro.

AOL – Afinal, os militares da época não tinham contas nas ilhas Cayman.

Carta – Evidentemente, havia gente corrupta. Mas era gente menos voltada para este aspecto, para essa questão. Neste aspecto, a culpa deles foi ter protegido muitos corruptos. O Golbery, que certamente teve um papel muito importante para o bem e, sobretudo, para o mal, ele é um homem que morreu pobre, que nunca teve nada. Não era esse o ponto. Agora, ele tinha uns amigos do capeta. É muito simbólica essa maneira de ver as coisas. O Andreazza [general Mario Andreazza] também é outro acusado de não sei o quê. Pois morreu e os amigos tiveram de fazer uma vaquinha para o enterro. Mas, certamente, ele tinha uma tranca de amigos muito perigosos.

AOL – E quais são os nomes desses amigos perigosos?

Carta – É melhor silenciar… Há referências a todos em O castelo de âmbar.’