Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Além de crédito, credibilidade

Deus é brasileiro e, além disso, torce para o bom nome do nosso jornalismo. Não fosse a divina providência nossos empresários de comunicação seriam obrigados a ouvir as pesadas críticas do presidente Lula ao denuncismo da mídia na humilhante condição de solicitantes de favores especiais do governo.


Felizmente, quando o chefe da nação ingressou no seleto clube dos media-critics (terça, 13/07), as entidades que representam as corporações de comunicação (ANJ, ANER e ABERT) já haviam desistido da linha de crédito especial no BNDES por meio de carta entregue ao presidente do banco, Carlos Lessa, na segunda-feira (12/7).


Coincidências: os dois fatos aparentemente não se cruzam, não há relação de causa e efeito entre a desistência do favorecimento e a imediata repreensão, a primeira que o presidente da República faz sem meias palavras aos nossos procedimentos jornalísticos.


Conviria verificar se os presidentes pós-democratização (Sarney, Collor, Itamar e FHC) alguma vez fizeram tão candentes críticas à imprensa. Conviria verificar também se o comportamento da instituição jornalística em circunstâncias semelhantes foi tão tíbio e envergonhado. Não fosse o texto de Luiz Garcia no Globo, o pito passaria em brancas nuvens [veja remissão abaixo].


Marcas permanentes


Apesar de encerrado o inconveniente namoro governo-imprensa com o BNDES fazendo-se de Cupido, o episódio não poderá ser erradicado dos futuros compêndios da história da imprensa brasileira. Em primeiro lugar porque foi inédito: a nossa imprensa, como instituição, jamais procurou governo algum para solicitar financiamentos coletivos. As transgressões se davam a dois, no escurinho do cinema.


Delfim Netto, quando czar da nossa economia, reunia-se semanalmente com a sua corte de empresários e altos executivos da mídia, mas havia um certo pudor em ostentar as ‘relações especiais’. Todos sabiam de tudo mas as torcidas do Flamengo e do Corinthians ficavam de fora por força da censura e da autocensura.


A pretendida ‘transparência’ do Pró-Mídia foi fatal – duplamente fatal, não fosse a redundância – porque escancarou o que não poderia ser escancarado e, ao escancarar como era obrigatório, liquidou suas chances de sucesso. Antes assim. Numa sociedade democrática moderna, efetivamente aberta, as relações governo-imprensa não podem ser colocadas no âmbito bancário onde só há credores e devedores.


A emenda saiu pior do que o soneto: a justificativa para a desistência é absolutamente inconvincente. O fato de a Editora Abril e o Grupo Globo terem resolvido algumas de suas premências, ao alienar parte do seu capital, não pode servir de argumento para anular uma solicitação que envolvia, pelo menos, uma dúzia de empresas e, sobretudo, os grandes jornais.


Quando foi feito o pedido ao BNDES, o quadro era o mesmo de hoje. Para a indústria da comunicação nada mudou, inclusive o sufoco. A única novidade é a percepção de que o ‘entendimento’ com o BNDES era altamente prejudicial para a imagem da imprensa brasileira. Os benefícios oferecidos não eram grande coisa e o custo moral, proibitivo. Se os empresários tivessem pensado um pouco mais, ou conversado com jornalistas capazes de raciocinar numa linha diferente dos empregadores, jamais teriam embarcado nessa aventura que, embora abortada, deixará marcas indeléveis.


Práticas abusivas


O carão do presidente Lula sobre o denuncismo é também algo para não ser esquecido. Em primeiro lugar porque é justo. Retroativamente justo porque neste exato momento as revelações de escândalos na esfera pública estão sendo feitas depois de cuidadas investigações.


As séries do Globo sobre o enriquecimento de deputados estaduais fluminenses e agora de vereadores cariocas são irrespondíveis e obedecem aos mais rigorosos critérios jornalísticos e legais. Assim também as reportagens da Folha de S.Paulo sobre o trabalho escravo em grandes empresas do agronegócio.


Neste momento, o único denuncismo irresponsável está sendo praticado pela IstoÉ, que não chega a representar uma corrente majoritária do jornalismo brasileiro.


A bronca presidencial não deve ser esquecida em segundo lugar porque quem ajudou a consagrar o denuncismo como prática jornalística foi o próprio presidente Lula, antes de envergar a faixa presidencial, quando comandava o principal partido de oposição. O jornalismo fiteiro, a transcrição de grampos ilegais realizados por máfias políticas e a farta circulação de dossiês secretos sempre encontraram no PT parceiros entusiasmados e diligentes, dispostos magnificar qualquer absurdo.


Levará algum tempo até que seja extirpado este velho sensacionalismo e as práticas abusivas que deixou arraigadas em certos setores da mídia, principalmente na Capital Federal. Para apressar o seu fim cabe ao governo ficar mais atento às revelações corretas e bem apuradas veiculadas pela imprensa.


Caminho único


O governo hoje sabe separar o joio do trigo, sabe discernir acusações pertinentes das impertinentes. Só não sabe – ou não quer – dar seqüência às informações que podem comprometê-lo numa temporada eleitoral na qual joga todas as suas fichas.


Exemplo: as denúncias envolvendo o candidato a prefeito do Rio Marcelo Crivella (PL) no tocante a declaração de seus bens ultrapassam a esfera da Justiça Eleitoral ou da Receita Federal. O senador Crivella é um dos parlamentares que acumulam o mandato político com a propriedade de empresas de comunicação, irregularidade que ao governo não interessa coibir, muito menos exibir. Tanto assim que o ministro das Comunicações mandou retirar do site do ministério a lista com o nome dos proprietários das concessionárias de rádio e televisão sob a alegação de que precisava ser atualizada. Desculpa esfarrapada: a lista voltou ao site na segunda-feira (19/7) após a denúncia da sua desaparição [veja abaixo remissão para a lista de controladores de emissoras de rádio e TV].


Estavam cobertos de razão os líderes do governo quando afirmavam que a questão da imprensa é de interesse nacional. Erraram as empresas de mídia quando imaginaram que o interesse nacional passa pelos guichês dos bancos oficiais. Além de crédito, a mídia precisa de credibilidade. Ou do reconhecimento quando cumpre a sua missão.


A denúncia contra o denuncismo, além de desatualizada e mal formulada, tem algo de autoritária. Com ou sem o Pró-Mídia parece uma jogada para desqualificar preventivamente qualquer investigação jornalística que esteja em curso. Logo agora quando o Primeiro Poder e o Quarto Poder decidiram dormir em camas separadas. Logo agora quando o Waldogate começa a ser examinado pela Justiça.


Foram todos salvos pelo gongo: a imprensa percebeu a tempo o pântano em que estava prestes a mergulhar. Falta agora o governo perceber que para ajudar a imprensa só existe um caminho: valorizá-la.