O show vai recomeçar. No dia 23 de agosto o Jornal Nacional iniciará uma série para turbinar a cobertura das eleições presidenciais: visitará uma cidade de cada estado brasileiro, além do Distrito Federal, a bordo de um jato Falcon 2000 – eventualmente substituído por um monomotor Caravan, no caso de municípios menores –, com o alegado objetivo de oferecer um panorama geral do modo de vida e das expectativas dos eleitores.
É uma reedição, agora pelo ar, da caravana que atravessou o país quatro anos atrás. Porém, como daquela vez, não trará novidade. Porque, como daquela vez, o principal não é informar sobre a vida e os anseios das pessoas, mas enaltecer a potência tecnológica da maior rede de televisão do país, numa evidente estratégia de marketing que apenas reforça a crítica ao desvirtuamento do jornalismo transformado em espetáculo autorreferente.
Quatro anos antes, a ‘caravana’
Em julho de 2006, o Jornal Nacional lançava a ‘Caravana JN’, dedicando um bloco inteiro do telejornal para exibir a grandeza dos números: 15 mil quilômetros de estradas a serem percorridas; 380 quilos de equipamentos, que garantiriam transmissão via satélite de qualquer ponto do país; dois meses a bordo de um ônibus (o ‘motorhome’, devidamente adaptado para a ‘missão’) e oito dias num barco atravessando parte da região Norte. Comandada pelo jornalista animador dos Big Brothers, a expedição contaria, a cada quinzena, com outra celebridade: o casal-símbolo do JN se revezaria no deslocamento para as cidades por onde o ônibus passava, para dali ancorar parte do telejornal, arrastando consigo a previsível legião de figurantes.
Poeta reincidente, o jornalista-animador caprichava nas frases de efeito. Logo na estréia, por exemplo, se inspirou no nome da cidade de onde a caravana partia – a histórica São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul – para afirmar: ‘Do sul talvez possamos encontrar o norte de nossa missão mais facilmente…’.
Quatro anos depois, o repórter é outro, mas a profusão de lugares-comuns persiste: o projeto ‘JN no ar’ vai ‘decolar’, a democracia vai voar ‘nas asas da informação’, esse voo vai nos ajudar ‘a escolher melhor quem vai pilotar o Brasil depois da próxima eleição’.
Da mesma forma, persiste a exaltação dos números: ‘Vamos voar pelo menos 55 horas a bordo deste jato executivo de fabricação francesa’, capaz levar, ‘sem escalas, a qualquer ponto do território nacional’, voando ‘a mais de 800 km/h’ e carregando ‘700 quilos de equipamento’ eletrônico, a ser montado em cada aeroporto para o envio das reportagens.
A mesma velha história
O nome escolhido para a série pode não ter sido o melhor – afinal, o JN, por definição, deve sempre estar ‘no ar’ –, mas os propósitos declarados são os mesmos que sustentaram os da caravana, quatro anos antes: identificar ‘os desejos do Brasil’. Não só as preferências eleitorais, não só ‘um retrato do estado, feito com base em dados de pesquisas de instituições respeitadas como o IBGE’, mas aquilo ‘que não aparece nas planilhas, mas faz o orgulho de cada lugar: o bom humor dos seus moradores, suas ruas limpas (sic), sua riqueza de cultura e história’.
Mereceria comentário essa intenção deliberada de exaltar as qualidades de nossa terra e nossa gente, tão característica dos tempos do ‘Brasil grande’, quando a Globo, aliás, se firmou como campeã de audiência. Mais interessante ainda é indagar o quê, afinal, distingue esse enorme e custoso esforço de reportagem do material veiculado diariamente pela emissora. Apresentar o Brasil aos brasileiros – de preferência sem demagogias, mas aqui não se trata de discutir a orientação ideológica da empresa – acaso não é o fundamento de qualquer trabalho jornalístico?
Ao sabor do acaso
Na época da ‘caravana’, o jornalista Mário Marona comentava, em artigo reproduzido neste Observatório (‘Jornal Nacional tenta retomar o caminho. De ônibus‘, 1/8/2006):
‘Uma rede de televisão que dispõe de 121 emissoras em todo o país, entre empresas próprias e afiliadas, todas com equipes de telejornalismo e com pelo menos uma equipe exclusiva para o Jornal Nacional em cada capital, não precisaria de um ônibus para mostrar o Brasil real’.
Tampouco precisaria agora desse aparato aeronáutico, patrocinado por um dos maiores bancos do país, cujo logotipo viajará no leme do jatinho. Entretanto, como dizia o velho barão, há mesmo sempre algo mais no ar além dos aviões de carreira. Daí que toda essa parafernália se torna não apenas necessária como indispensável, porque o objetivo principal é a autopropaganda: legitimar-se junto ao público, exibindo seu poderio tecnológico, com a presença de jornalistas experientes, reconhecidos e reconhecíveis, identificados com a ‘marca’ da emissora.
Nada disso é novidade, porém. A CNN teve o seu ‘Election Express’, um ônibus que cruzou os EUA entre dezembro de 2003 e novembro de 2004, quando Bush saiu vitorioso. Na eleição de Obama, ano passado, exagerou de tal forma na mágica das holografias que poderia concorrer ao Oscar de efeitos especiais. Para o jornalismo inspirado em Hollywood, a informação é o que menos importa.
Novidade talvez seja a forma pela qual se definirá o destino do jatinho global: por sorteio, na bancada do Jornal Nacional, na véspera de cada viagem. Acrescenta-se aí um elemento típico de show de variedades, tão ao gosto da audiência. Quem sabe não se formarão listas nas ‘redes sociais’ para tentar adivinhar as cidades a serem visitadas? Quem sabe não haverá rufar de tambores para sublinhar a excitação durante o sorteio? E o que diriam os nossos teóricos do jornalismo, ao se darem conta de que os ‘valores-notícia’ podem oscilar ao sabor do acaso?
Resta indagar se, numa próxima visita de William Bonner a uma das nossas universidades que cultivam o convênio com a Globo, haverá alguém na platéia capaz de deixar de lado o deslumbramento para fazer as perguntas que realmente importam.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)