Como fotografia, a seqüência é quase banal. Uma pessoa algemada num país onde os grandes criminosos jamais deixam-se fotografar, no máximo chamaria a atenção pela raridade. Dramático é o que se depreende das informações da legenda ou da matéria ao lado. Trágica é a constatação: agentes da Polícia Federal, a mais qualificada das nossas polícias, invadiram as instalações de um jornal, exaltados, deram voz de prisão a dois editores e algemaram um deles.
Nem no pranteado Estado Novo de Getúlio Vargas fizeram-se tais flagrantes. Jornalistas eram exilados; oficinas, empasteladas; e jornais, colocados sob intervenção. Os esbirros de então tinham, aparentemente, mais pudores do que os de hoje — obedeciam às ordens, mas preferiam ficar na sombra, não queriam aparecer.
A esfarrapada desculpa de que os federais de Belo Horizonte obedeciam a uma determinação da Justiça Eleitoral é ainda mais absurda. O magistrado determinou uma busca na tipografia do jornal O Tempo para descobrir exemplares de um jornal clandestino que supostamente era lá impresso e infringia os regulamentos eleitorais. Tudo no condicional. O meritíssimo não mandou invadir o jornal, dar voz de prisão ou algemar editores.
No mandado não estavam previstos os desmandos.
A PF excedeu-se no cumprimento da missão judicial e adicionou à absurda diligência sua carga de subjetividades. O problema é exatamente este: não houve violência física, a intimidação durou apenas 20 minutos, mas ela reflete um perigoso ambiente contra os meios de comunicação. O espírito do confronto eleitoral baixou no corpo dos bravos agentes da lei.
Não aconteceu por acaso, num passe mediúnico. De repente, a imprensa tornou-se a culpada das mazelas, bode expiatório para descarregar frustrações e exacerbações partidárias. O governo federal não tem culpa, a direção do partido majoritário não pode ser responsabilizada pela estúpida ação policial, mas é imperioso reconhecer que o tom de represália no encaminhamento do anteprojeto do Conselho Federal de Jornalismo e os retoques que o texto sofreu na Casa Civil irradiou-se para outras esferas e escalões. A mídia tornou-se uma espécie de Geni, saco de pancada dos ressentidos e, sobretudo, dos ensandecidos.
É preciso que se diga que a imprensa não mudou, quem mudou foram os seus críticos. Nesta temporada eleitoral, os meios de comunicação comportam-se dentro dos mesmos parâmetros da eleição anterior, potencialmente mais tensa e, não obstante, tranqüila. Não se justificam, portanto, as atuais tensões e exaltações.
Imperioso constatar que são justas e cabíveis muitas queixas contra a imprensa. Caso contrário este Observatório não existiria há tanto tempo e com tanta aceitação. Acontece que as falhas não são novas — aconteceram no mandato de Itamar Franco, repetiram-se nos dois governos de FHC e estenderam-se até esta primeira metade do governo Lula.
São disfunções crônicas. O recente surto de denuncismo e os linchamentos midiáticos dele decorrentes não foram diferentes dos anteriores. Porém, no passado as críticas e acusações à mídia jamais materializaram-se em ações ou retaliações como as acontecidas quinta-feira, 26/8, nas Alterosas.
Ao dar ordem de prisão ao diretor de O Tempo, Theodomiro Braga, e algemar o editor Almerindo Camilo sem ordem de prisão ou culpa formada, a Polícia Federal não cumpria determinações superiores – simplesmente cedia a uma ambientação. Entrava no clima. E clima, como se sabe vem do grego, klima, inclinação.
Antes que se transforme em tendência incontrolável, convém derreter esta bola de neve. Se há alguém que pode fazê-lo com a necessária urgência e indiscutível autoridade, este alguém é o governo. Mesmo que nada tenha a ver com este peixe.
Curiosas foram as reações ao episódio. Na sexta-feira, apenas a Folha ouriçou-se, lembrada da invasão do seu prédio pelos agentes da Receita Federal por ordem de Collor de Melo. Os demais jornalões reagiram burocraticamente. O Ministério da Justiça não se manifestou — esqueceu que era árbitro e assumiu que era parte. Mas o presidente do TSE, ministro Sepúlveda Pertence, percebeu o perigo e manifestou a sua preocupação. Os semanários passaram ao largo no fim de semana. Nenhum jornal opinou sobre o assunto. Na segunda-feira, a inusitada ocorrência evaporara por completo.
A ABI reagiu pronta e energicamente, tal como fez tão logo divulgou-se o projeto do Conselho Federal de Jornalismo. Também o Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais. E a Fenaj, que se apresenta como entidade representativa dos jornalistas e pivô da grande querela que divide os jornalistas brasileiros, sumiu do mapa. Ficaram as algemas que a PF resolveu incluir no panorama do jornalismo brasileiro.