Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Alianças estratégicas ameaçadas

O atual conflito entre Trump e a mídia sinaliza uma mudança nas relações entre políticos e a imprensa nos Estados Unidos e, ao que tudo indica também a médio prazo, no Brasil e no resto do mundo. Esta mudança está sendo impulsionada por divergências na formatação dos fatos, dados e eventos publicados sob a forma de notícias, comentários, investigações e opiniões.

É o que ficou conhecido como “doutrina dos fatos alternativos”, uma manobra midiática segunda a qual governantes e tomadores de decisões usam a repetição para consolidar uma versão dos fatos, qualificando como “falsas verdades” (fake news) todas as descrições discrepantes. A arena política mundial está deixando de discutir fatos para esgrimir versões, numa nova modalidade de guerra ideológica.

Ilustração reproduzida do site http://ambernaslund.com

Conflito entre forças opostas / Ilustração reproduzida do site http://ambernaslund.com

Até agora e elite política e os empresários da imprensa adotavam discursos e estratégias que, em grande medida, eram consensuais porque respondiam a interesses comuns , como a manutenção do status quo contra investidas de tendências populistas socializantes ou movimentos ultraconservadores.

A eleição de Trump e o crescimento da direita europeia são indícios do surgimento de um novo ator que estava marginalizado no cenário de consenso entre a elite política e a elite jornalística. É problemático classificar este novo ator como reacionário, de direita, ultraconservador ou fundamentalista, porque ele ainda não foi definido claramente do ponto de vista sociológico e político. Mas o fato concreto é que ele é quantitativamente representativo, sente-se excluído pelos centros tradicionais de poder e rejeita as posturas “politicamente corretas” da imprensa em relação a questões como a dos refugiados árabes e africanos.

Para Trump, atacar a mídia é um alvo fácil e que lhe rende popularidade entre os marginalizados da classe média e baixa nos Estados Unidos, para os quais a imprensa é uma aliada incondicional dos que controlam o poder há décadas. A imprensa, por seu lado, ainda não sabe como lidar com a nova situação, porque sempre gravitou em torno do poder, até mesmo em situações como a de Watergate, nos Estados Unidos, quando foi um poderoso instrumento para que os políticos descontentes com o então presidente Richard Nixon, encontrassem uma forma de afastá-lo da Casa Branca.

O racha no sistema

Em Watergate, foi uma luta pelo poder entre políticos, com a participação da imprensa. O que está acontecendo hoje é bem diferente porque Trump procura escapar do núcleo do poder em Washington, usando a comunicação direta com os milhões de rejeitados na política norte-americana como peça chave numa estratégia sem a participação da grande mídia.

Para a elite partidária republicana e democrata em Washington e para os grandes conglomerados midiáticos norte-americanos quanto mais se prolongar a atual queda de braço entre Trump e a imprensa, maior o temor de um aprofundamento do racha no esquema tradicional de sustentação do poder nos Estados Unidos.

Na Europa ocorre fenômeno similar com a polarização política entre conservadores e liberais, incluindo a esquerda, a propósito das consequências da integração econômica e da avalanche de refugiados africanos e sírios. A imprensa europeia acabou ficando numa situação incômoda porque ela tradicionalmente defende posições centristas e liberais, e sente os embaraços causados pela necessidade de ser coerente com seus laços políticos e, ao mesmo tempo, aproximar-se de segmentos sociais que também se sentem marginalizados pelos núcleos de poder do Velho Mundo.

Os problemas políticos da imprensa não poderiam ocorrer em pior momento, porque ela enfrenta a dificílima transição para o modelo digital, sem que até agora tenha conseguido chegar a um modelo minimamente confiável em matéria de sustentabilidade financeira. Os dilemas politico-estratégicos se somam aos desafios em matéria de gestão empresarial na era digital.

Lava Jato e a saia justa da imprensa

Aqui no Brasil, o acordo de interesses entre as elites políticas e a grande imprensa está sendo minado pela ação da Lava Jato, tendo como pano de fundo as investigações de corrupção no governo, empresas públicas e privadas. A Lava Jato surgiu como uma eficiente ferramenta para encurralar o governo da presidente Dilma Rousseff por meio das denúncias de propinas e caixa 2 nas campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores, levantadas por investigações do Ministério Público (MPF) e da Polícia Federal (PF).

Até o impeachment de Dilma, no ano passado, havia uma aliança tácita entre a elite política formada por PMDB, PSDB e DEM e o MPF e a PF, com a participação da mídia. Mas depois de consumado o afastamento da presidente petista, os novos detentores do poder já não se interessaram mais pelo aprofundamento das investigações porque seriam os novos alvos dos promotores e policiais, já que o caixa 2 é um elemento estrutural nas campanhas eleitorais no Brasil.

Aí surgiu o início de um processo de divórcio que acabou colocando a imprensa numa saia justa. Se moralmente ela está comprometida com a anticorrupção, seus laços com os três partidos são fortes demais para serem renegados de uma hora para outra.

Se nos Estados Unidos, e em vários países da União Europeia, a grande mídia já escolheu um lado, aqui no Brasil o cerco dos investigadores sobre o PMDB e o governo Temer reduz rapidamente a margem de manobra da imprensa e tudo indica que ela terá que fazer, em breve, uma opção dramática entre princípios e interesses.

Trata-se de uma escolha muito complicada. Afinal a imprensa tem sido um dos elementos chaves para a disseminação entre a opinião pública da proposta de “passar o Brasil a limpo” defendida pelos investigadores da Lava Jato. Esta proposta é o que ameaça agora quebrar o histórico modelo de aliança entre a grande imprensa e o sistema de poder vigente no país.

Não se pode descartar a hipótese de um futuro conflito entre os segmentos políticos que se posicionam como os maiores defensores do combate à corrupção, como os ultra conservadores estilo Bolsonaro, e os três maiores grupos midiáticos do país, tradicionais apoiadores da elite política formada por PMDB,PSDB e DEM.

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Carlos Castilho é jornalista fazendo pós doutorado em jornalismo digital