Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Anatomia da carestia

O fantasma da inflação dispara automaticamente um nhenhenhém da imprensa: a culpa é do estúpido aumento dos gastos do Estado. Quando se pretende aprofundar a questão recorre-se a outro nhenhenhém, o não menos estúpido aumento dos impostos para cobrir os gastos e a escorchante taxa de juros para fechar as contas.

Trololó parcialmente verdadeiro: o Estado gasta de fato muito mais do que pode, o Fisco está mais encarniçado do que nunca, a taxa de juros impede investimentos e a expansão da indústria. A mídia não menciona o fenômeno que antigamente se designava de ‘carestia’ e hoje, com um pouco mais de coragem, já se pode designar com nome e sobrenome: ganância empresarial.

Pesos e medidas

O empresário brasileiro não joga no médio ou longo prazo, está interessado no aqui e agora. Como a classe média está forrada de grana, como os governos (saidor e entrante) não pretendem correr riscos e diminuir a euforia, o empresariado aproveita a sofreguidão comprista e lasca preços salgados. De cuecas a jeans, de eletroeletrônicos a material de construção, de carros a comida em restaurante, tudo é visivelmente mais caro no Brasil do que nos países vizinhos e na Europa.

A imprensa não tem coragem de afirmar que no abominável ‘custo Brasil’ há um componente voluntarista e indecente dos produtores e intermediários. Tudo é absurdamente mais caro porque os preços são formados pelo setor. Para disfarçar os oligopólios, supermercados e redes de eletrodomésticos fingem disparidades em determinados produtos.

Pura camuflagem. Não existe competição no Brasil, existe corporativismo. Cartéis disfarçados, capitalismo feudal. O Mercado é uma ficção, cortina de fumaça para encobrir um arquipélago de associações e congregações que se acertam – formal ou informalmente – para fixar preços, regras, procedimentos.

A própria mídia, teoricamente dependente da diversidade, não consegue resistir à compulsiva camaradagem gremial. Prova disso é a cobertura do escândalo do Banco Panamericano, de propriedade do popular apresentador de TV, Sílvio Santos. Em qualquer país sério o presidente de um grupo econômico cujo banco engana os correntistas e o fisco já estaria processado e todos os seus bens embargados.

Apetite infindo

Sílvio Santos, porém, é muy amigo, completou oitenta aninhos, merece toda a consideração porque faz parte do exclusivíssimo clube de donos da mídia que às vezes até sai no tapa, mas na hora de enfrentar a lei prefere fingir que não existem leis. Assim a novela do Panamericano, movimentada por geniais criminalistas, concentra-se na briga entre o ex-responsável pelas operações bancárias e o seu contador, enquanto o responsável pela virtual quebradeira faz a ponte São Paulo-Orlando.

A mesma mídia desfibrada que não consegue devassar os ilícitos do estouro do Panamericano não pode denunciar os absurdos preços praticados pelo comércio porque é o comércio que a sustenta com anúncios. Se o tal do jornalismo investigativo fosse praticado em todas as editoriais, seções e cadernos, e estivesse comprometido com a defesa dos interesses daqueles que não podem fazer compras em Buenos Aires ou Miami, a carestia já estaria devidamente devassada e enquadrada. Parte da culpa é do governo Lula. Outra parte, e não muito menor, pode ser creditada ao voraz apetite das classes produtoras.