Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Anotações do dia-a-dia


Quinta, 28/4/2005


Venezuela de Chávez


Na cobertura da visita da secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, se perdeu mais uma oportunidade para aprofundar a questão da Venezuela. Provavelmente a maior encrenca em desenvolvimento na América do Sul neste momento.


O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, decidiu criar uma vertente militarizada para aquilo que chama de política bolivariana. E essa militarização cria tensão com a Colômbia, da qual os Estados Unidos são aliados, e numa certa medida potencialmente até com o Brasil, do qual os Estados Unidos são aliados.


Não existe nenhuma garantia de que uma deterioração ainda maior das relações da Venezuela com os Estados Unidos seja um fator de mudança do perverso quadro socioeconômico venezuelano.


Agora, para o Brasil as sobras dessa briga podem dar muito prejuízo.


Severino e a ditadura


O presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, declarou que o governo Lula bloqueia com Medidas Provisórias as iniciativas dos parlamentares. Comparou a situação atual com o cerceamento imposto durante o regime militar.


Só a Folha de S.Paulo lembrou que Severino apoiou os militares, e seu partido, o PP, é sucessor da Arena, legenda que dava sustentação ao regime autoritário.


O problema do processo legislativo existe, e não existe só no Brasil, mas não convém que seja tratado na base das declarações bombásticas para ganhar manchetes. Em todo caso, a mídia não pode entrar no jogo de repercutir essas declarações acriticamente.


Nestlé e Garoto


Os jornais se perderam um pouco nos detalhes jurídicos do processo em que o Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica vetou definitivamente a compra da Chocolates Garoto pela Nestlé. A Nestlé ainda pode recorrer à Justiça comum.


A Folha de S.Paulo deu informações sobre a concentração no mercado brasileiro de chocolates. O Jornal do Brasil mostrou que o pano de fundo é uma briga de gente grande. Duas multinacionais, a Masterfoods e a Cadbury, disputam abertamente a empresa do Espírito Santo.


Mas ninguém tem colocado o assunto no devido contexto: monopólios e cartéis são um dos problemas sérios do capitalismo brasileiro. E freqüentemente com a ajuda de governos, e não sua oposição.


Se o governo deixar, o empresário aproveita o monopólio. Para os chamados consumidores, para os cidadãos, isso é um grande problema.


Se o controle de mercados por poucos fosse tratado com maior transparência se entenderia melhor por que o Brasil cresceu durante muitos anos como uma economia fechada e com uma renda tão concentrada.


Promoção em formato telejornalístico


O Jornal Nacional de ontem, quarta-feira, mostrou uma espécie de matéria-paga sobre a festa comemorativa dos quarenta anos da Rede Globo realizada na véspera. Reportagem convencional, morna, procurando apelar para a emoção. Declarações de atores, na maior parte. Nada de reflexão. Isso não é novidade. A Globo faz isso há tanto tempo, e com tanta freqüência, que a gente até se acostuma.


Em nome do jornalismo – ninguém lá vai fazer isso… -, mas em nome do jornalismo se deveria reivindicar que esse tipo de promoção só fosse feito nos intervalos comerciais, ainda que eventualmente em prejuízo do faturamento.


Podemos fazer um teste. A Globo daria uma notícia sobre uma boa programação de uma outra emissora? Nunca deu.


Bola dentro


A melhor comemoração dos quarenta anos da Globo foi a novidade guardada com carinho para a transmissão do jogo entre Brasil e Guatemala no Pacaembu. Um novo sistema que permite o uso de uma câmara que sobrevoa o campo enquanto o jogo se desenrola.


É uma tecnologia sensacional. E ela muda o modo de trabalhar. Nesse caso, do jornalismo esportivo.


Sexta, 29/04/2005


Mudanças na equipe econômica


Os jornais gastaram muitas páginas sobre as mudanças na equipe econômica, a saída de Marcos Lisboa e a entrada de Murilo Portugal, mas não fizeram a ligação entre a continuidade da política monetária e as informações sobre ameaça inflacionária divulgadas na véspera. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, mencionou o assunto.


Num país com o histórico do Brasil, o Banco Central não pode dar sinais de complacência. E o Ministério da Fazenda continuará procurando manter a austeridade. O governo Lula não vai mudar essa linha, que é o penhor de sua credibilidade.


OMC e etanol na coletiva de Bush


Outra ligação que os jornais não fizeram foi entre a vitória do Brasil na Organização Mundial do Comércio contra a União Européia, na questão dos subsídios à exportação de açúcar, e a entrevista coletiva dada na quinta-feira pelo presidente George W. Bush. Bush falou da questão energética e reiterou que o governo americano considera o etanol fonte alternativa ao petróleo.


As duas notícias reforçam o setor chamado sucro-alcooleiro do Brasil, um setor que se modernizou muito nos últimos anos.


Coletiva de Lula


O presidente Lula dará nesta manhã de sexta-feira sua primeira entrevista coletiva. Terá que responder a perguntas sobre assuntos delicados, como acusações de corrupção contra um ministro, excesso de medidas provisórias, suas próprias declarações a respeito da negociação da Área de Livre Comércio das Américas, Alca.


O noticiário informa que Lula vai procurar destacar os fatos positivos de seu governo. Faz parte do jogo político destacar o que é positivo e atenuar o que é negativo. Mas é verdade que, como pensa o governo, a mídia valoriza pouco os fatos positivos. Isso não é um problema do governo, mas do país.


Confunde-se um pouco oposição partidária ao governo com oposição a políticas de governo. Os partidos pegam carona na mídia e vice-versa. Na maior parte do tempo não há uma discussão serena sobre os problemas.


Brazucas presos


O Estado de S.Paulo informa que 15.548 brasileiros foram presos desde outubro passado tentando entrar ilegalmente nos Estados Unidos.


A mídia até hoje não noticiou, nem cobrou, providências do governo para enfrentar a questão. A decisão de cometer um ato ilegal é individual, mas existem quadrilhas que vivem da atividade ilegal. E elas têm uma ponta no Brasil, obrigatoriamente. Será que uma repressão maior contra essas quadrilhas não inibiria esse fluxo de emigração ilegal?


Fraldas na China


O Financial Times, em reportagem traduzida hoje pelo Valor, informa que a Procter & Gamble, maior grupo de produtos de consumo do mundo, vai lançar no mercado chinês fraldas descartáveis de baixo custo. Custariam entre dez e onze centavos de dólar, mais ou menos o preço, diz o jornal, de um ovo.


O Financial Times se esqueceu de dizer que nascem a cada ano na China cerca de dezessete milhões de crianças. Mesmo se apenas uma parcela modesta dos pais chineses conseguirem pagar fraldas descartáveis, o país estará diante de mais um problema de meio ambiente. Como se sabe, ainda não há solução para o descarte adequado de fraldas.


Sábado, 30/4/2005


Lula e juros nas manchetes


A interpretação da entrevista coletiva do presidente Lula sofreu em algumas capas de jornais pelo Brasil afora. O Estado de S.Paulo acertou na mosca ao dizer que, segundo Lula, juro alto não deve ser o único remédio contra a inflação. O governo estuda outros instrumentos. Foi exatamente o que Lula disse. A Zero Hora, de Porto Alegre, teve a mesma precisão: o presidente disse que o combate à inflação não deveria depender só do aumento dos juros.


A Folha de S.Paulo acertou no título, mas errou no texto da chamada. Foi erro de entendimento ou de compreensão da bela língua portuguesa. Lula, segundo a Folha, ‘admitiu que seu governo erra ao não encontrar alternativas às altas taxas de juros para combater à inflação’. Confundiram ‘alternativas’ com ‘outras opções’, que não entrariam no lugar dos juros para combater a inflação, mas em paralelo. O dicionário diz que alternativas são coisas reciprocamente exclusivas.


Batatadas da edição da coletiva


O Estado de Minas e A Tarde, de Salvador, endossaram a idéia de que o governo Lula cometeu só três erros, escrevendo: ‘Os três erros de Lula’. O jornal baiano foi impecável no subtítulo, mas o mineiro e o pernambucano Jornal do Commercio forçaram a barra ao escrever que o presidente reconheceu que foi um erro responder com juros altos à tendência de alta da inflação.


O Jornal do Brasil acertou no título, como o Estado e Folha, mas derrapou duplamente no subtítulo: ‘Lula abriu a possibilidade de alterar a política econômica na primeira entrevista coletiva’. O jornal quis dizer que Lula abriu na primeira entrevista coletiva a possibilidade de alterar a política econômica. Lula não disse que vai alterar a política econômica, nem, muito menos, que poderia fazê-lo em plena entrevista coletiva…


Ao contrário: reiterou seu apoio ao cumprimento das metas de inflação. E por isso sua entrevista foi um primeiro ato muito bem-sucedido da campanha pela reeleição.


Globo, espetáculo e jornalismo


O Globo Repórter de sexta-feira à noite foi sobre os bastidores da TV Globo. Foi o encerramento das comemorações dos 40 anos da emissora. Espetáculo e jornalismo, os dois maiores esteios da Globo, foram apresentados no mesmo pacote.


Essa aproximação expressa a importância que a Globo dá ao jornalismo. Nos primeiros 40 anos a Globo teve méritos, mas praticou uma politização indevida a serviço de seus interesses empresariais. Quanto mais o país se democratizar – se democratizar num sentido amplo, que abrange maior inclusão social -, mais esse interesse da Globo pelo jornalismo será positivo, dada a importância da emissora.


Ao mesmo tempo, apresentar numa abordagem conjunta espetáculo e jornalismo mostra uma proximidade entre as duas coisas que ainda é uma das fragilidades do modo como a Globo trabalha a notícia. A Globo é o território por excelência da espetacularização da notícia.


Segunda, 2/5/2005


O discurso de reeleito


Foi automático. O presidente Lula colocou uma frase sobre o fornecimento de eletricidade a todos os lares até 2008, portanto no que seria seu segundo mandato, e os jornais levaram o discurso da reeleição para as manchetes.


Ainda no domingo, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, deu o álibi que formalmente inocenta o presidente: trata-se de meta do Programa Plurianual, que vai além do mandato de Lula.


Lula usou com brilho a entrevista coletiva da semana passada, e agora a comemoração do 1º de Maio, para deixar os jornais lançarem sua campanha à reeleição. É claro que, para defender seu governo, ele poderia ter escolhido um assunto com horizonte temporal dentro do atual mandato. Jogou uma isca, morderam.


Esse automatismo das manchetes só confirma o papel político da mídia. Que a própria mídia não compreende claramente, porque a imprensa brasileira finge que não tem opinião e interesses próprios. E isso deixa menos claro para a opinião pública como é o grande jogo da política.


Denúncia sobre ligação do MST com o PCC


O Estado de S.Paulo desta segunda-feira informa que pode ter havido ajuda do Movimento dos Sem Terra à organização criminosa Primeiro Comando da Capital para montar uma manifestação de mulheres de presos no Centro da capital paulista, no dia 18 de abril.


Escutas telefônicas feitas em 4 de abril, portanto duas semanas antes do ato público, captaram presos nas penitenciárias de Araraquara e Iaras, interior de São Paulo, discutindo a organização do evento. Um dos presos diz que falou com líderes do MST que lhe prometeram dar instrução sobre como organizar a manifestação.


Os jornais dormiram. Notícia é o que chama a atenção, sai da rotina. A Folha cobriu o evento ouvindo principalmente manifestantes, como se vê na edição de 19 de abril.


O Estado de S.Paulo captou a desconfiança do secretário da Administração Penitenciará paulista, Nagashi Furukawa. Furukawa disse que o dinheiro para organizar o ato das mulheres de presos, ou seja, para alugar ônibus e mandar fazer camisetas com dizeres de protesto, dificilmente poderia ter saído do bolso das manifestantes.


Estava ali uma boa dica. Mas foi preciso que autoridades revelassem o conteúdo das gravações para que esse possível nexo fosse noticiado.


A reportagem do Estadão desta segunda-feira sobre possível ligação entre pessoas do MST e integrantes do PCC sugere que há mais vasos comunicantes nas dobras da sociedade do que supõe a nossa vã filosofia.


Cinco anos de Valor


O jornal Valor Econômico completa cinco anos com a publicação de um caderno sobre os ‘Rumos da Economia’. É uma panorâmica que vai da macroeconomia – as políticas monetária, fiscal e cambial, a base da política econômica – à microeconomia, aquilo que diz respeito ao ambiente em que as empresas operam. Há uma pitada de política e uma reportagem sobre a políticas sociais. Mas a grande ausente do caderno é a educação pública.


O Brasil só vai se tornar um país desenvolvido se conseguir dar às crianças uma educação de qualidade. Se a imprensa não puser isso na cabeça, não haverá mobilização para exigir do governo uma política educacional mais competente.


Imigração ilegal brasileira


Pauteiro, no jargão jornalístico, é o encarregado de propor os assuntos que serão apurados pelos repórteres. A pauteira do material do jornal O Globo deste domingo sobre imigrantes brasileiros ilegais nos Estados Unidos se chama Glória Perez, autora da novela América.


A mídia brasileira demorou a dar ao fenômeno o tratamento merecido. A famosa emigração da cidade mineira de Governador Valadares para os Estados Unidos começou há duas décadas. Em 1994, ano da Copa do Mundo nos Estados Unidos, a Folha de S.Paulo noticiava que a polícia americana estava preocupada com a entrada de torcedores que pretenderiam ficar depois como imigrantes clandestinos. Mas já no ano seguinte, 1995, essa pauta estava esquecida. Voltou agora, na ficção da telinha da Globo.