Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Anotações sobre duas reportagens

Este artigo louva textos longos – eventualmente, impressos em papel. Numa época de fascínio pela velocidade, imposto por novo modelo industrial nascente de jornalismo, pode soar nostálgico. Paciência.

São duas reportagens sobre episódios que mereceram muitas matérias em todas as mídias. Mas a ‘soma’ de todas essas matérias não seria capaz de mostrar o que sintetizam essas peças do melhor jornalismo, publicadas na revista piauí de maio: ‘Fogo na usina do desenvolvimento acelerado – A grande revolta dos peões de Jirau’, de Fábio Fujita, e ‘O fim do mundo – A catástrofe de Friburgo, obra nacional’, de Consuelo Dieguez. Poucos adjetivos, se algum, poucos advérbios.

Jirau: da irritação à exasperação

Fujita começa com a descrição do clima de irritação, transformada em exasperação, durante a troca de turnos no canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. Salvo engano, foi o único repórter que apontou com precisão os episódios que funcionaram como estopins do que denomina ‘a maior revolta operária do Brasil no século XXI’. Descrição cadenciada, que começa por uma briga entre um peão e um motorista e culmina com a ação da Polícia Militar, para variar, inepta: ‘(….) um batalhão de choque da polícia atacou a esmo, à base de balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta’. A maior parte do canteiro já se reduzira a cinzas e ruínas.

O repórter dá em seguida o contexto: é a maior obra do PAC. E uma informação que não me recordo de ter lido alhures: quando as barragens de Jirau e Santo Antônio – a vizinha no Rio Madeira − operarem em conjunto ‘deverão faturar 8,5 milhões de reais por dia’.

A construtora Camargo Corrêa, que não deixou o repórter entrar no canteiro e não designou ninguém para conversar com ele, havia declarado não ter recebido nenhuma pauta de reivindicações. O vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Rondônia, Altair Donizete Oliveira, admitiu que não enviara um documento formal, mas que tentara, por telefone, obter autorização para fazer uma assembleia. Ou seja, o sindicato tentou resolver o assunto ‘pelo telefone’.

Condenados ao Buracão

Seguem-se depoimentos de trabalhadores sobre descumprimento de promessas feitas pela Camargo Corrêa e terceirizadas. Foi uma das raízes da rebelião. Há, também, basicamente duas categorias de funcionários, distintos pela cor dos uniformes:

‘Os ‘amarelinhos’ são os chefetes, os ‘encarregados’; os ‘verdes’, os peões.

‘Marcio Pedroza [operário ouvido] disse que os amarelinhos ameaçavam os verdes de enviá-los para trabalhar numa área conhecida como Buracão, a mais quente das obras, que combinava o calor do solo com o trabalho a céu aberto. Quebrar pedra ali era tido como um dos piores serviços. ‘Quando o peão ia beber água, o encarregado reclamava: − Ih, esse aí não vai aguentar. Se não aguentar, pode pedir demissão. Falavam desse jeito’, disse Pedroza, que viu gente desmaiar no exercício da tarefa’.

Os alojamentos de ambos os grupos eram desiguais. Pior: ‘No refeitório, nem sempre os operários conseguiam comer. Com uma hora de folga para o almoço, e filas enormes, às vezes não dava tempo. Eu vi um cara do meu lado desmaiar porque não conseguiu comer’, disse Anderson [outro operário entrevistado]. Se o peão esquecesse o crachá, não comia, diz o repórter. ‘’O segurança via o sujeito todo suado, via que tinha acabado de trabalhar, e mesmo assim não liberava’, contou o soldador José Raimundo Leite’. A comida, muito ruim.

No ambiente de trabalho, prossegue Fujita, trabalhadores mudados de função não recebiam equipamento de segurança adequado para a nova tarefa e corriam risco de acidente. A narrativa sobre as condições desumanas termina com relatos sobre o clima de tensão há muito reinante.

Nas alturas do poder

O repórter faz em seguida um retrospecto em que a questão política é ressaltada. Diz que Marina Silva deixou o Ministério do Meio Ambiente por pressão de Dilma Rousseff, então chefe da Casa Civil, para apressar licenças ambientais. E desdobra:

‘Com o aumento do poder de Dilma, o cronograma do projeto foi remanejado, e o início da geração de energia em Jirau foi antecipado de 2013 para 2012. (….) A pressa em terminar a barragem fez com que os operários fossem instados a trabalhar mais. A rotatividade da mão de obra é alta, ali, porque muitos trabalhadores acabam demitidos dentro do período de experiência, em geral por produzirem aquém do esperado. Como as vagas não podem ficar ociosas, as contratações são rápidas, com pouco rigor na seleção’.

Um ex-auxiliar de assistência social comentou que se apresentavam pessoas que ‘eram até incapazes de dizer o próprio sobrenome’.

No chão do canteiro

A etapa seguinte do relato retrata a calamidade social vivida por Porto Velho, a capital do estado, cidade que concentra trabalhadores migrantes. São apresentados casos de operários que viviam em situação análoga à da escravidão, e também, no outro extremo, ‘os malandros, e até mesmo bandidos’:

‘A irmã Maria Ozânia, da Pastoral [do Migrante], diz ouvir dos migrantes que, a partir do momento em que ficou evidenciada a corrida para a antecipação da entrega da obra, os problemas de violência em Jirau cresceram. Definitivamente, passou-se a contratar ‘qualquer um’, às pressas, sem critério. Donizete Oliveira, do sindicato, conta ter topado com um grupo de vinte homens, em Jaci Paraná, que, devido ao excesso de álcool, simplesmente abandonaram o trabalho’.

O álcool é usado como válvula de escape ‘em ajuntamento de migrantes, que trabalham intensamente em meio a estranhos. Como a circulação de bebida é proibida no canteiro, muitos recorrem às mais inventivas ideias para burlar a fiscalização. Nesses canais, circulam também drogas ilícitas’.

O subcomandante da PM de Rondônia confessa o despreparo das autoridades. O aumento da criminalidade em Porto Velho levou a situações como esta:

‘Irmã Maria Ozânia conta que, no ano passado, soube que no Instituto Médico Legal de Porto Velho havia cinco corpos de trabalhadores de Jirau para serem reconhecidos. Teriam sido mortos na cidade: depois de bebedeira, envolveram-se em brigas fatais.

− Fui verificar e não eram só cinco: eram 35 corpos – ela disse’.

Como o Jornal Nacional noticiou

A reportagem volta-se em seguida para o principal noticiário da televisão brasileira:

‘No Jornal Nacional, William Bonner anunciou a revolta da seguinte forma: ‘Cerca de 8 mil trabalhadores foram retirados do canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, depois de atos de vandalismo’. Num protesto realizado por trabalhadores da usina, nas ruas de Porto Velho, em 5 de abril, uma faixa respondia: ‘Vandalismo é a maneira com que são tratados os trabalhadores no canteiro de obras’’.

O papel do Planalto é mais uma vez apontado:

‘No mês passado, Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, antecipou-se à Camargo Corrêa e anunciou a demissão de 4 mil trabalhadores de Jirau. Argumentou que a empreiteira fizera contratações em excesso’.

No final, há o relato do operário Anderson, demitido depois da retomada parcial das obras, apesar de garantir que, ‘além de não ter participado dos tumultos, não faltou um dia ao serviço, nos oito meses em que ficou longe da família – ele é de Belém do Pará – trabalhando em Jirau. Tanto que integrou as equipes de limpeza das cinzas e destroços do pós-rebelião. Em benefício do crescimento acelerado da nação emergente, há quem precise fazer o trabalho sujo. E, uma vez feito, sair de cena’.

Com a gente da serra

Consuelo Dieguez começa seu relato da tragédia de Nova Friburgo, um dos municípios da Serra Fluminense duramente castigados em janeiro por um temporal de intensidade inaudita, com a movimentação do responsável pela Defesa Civil do município no dia em que ‘o volume de chuvas chegou a inimagináveis 220 milímetros. Ou seja, caíram 220 litros de água em cada metro quadrado de Nova Friburgo. Três mil encostas deslizaram. Riachos se transformaram em corredeiras mortíferas. Construções sólidas se dissolveram como castelos de areia’.

Em seguida, descreve os dramas vividos por nove personagens e suas famílias: Edemilson, o artesão, Salma, a educadora, Alex, o operário, Sonia, a professora, Rodolfo, o músico, Dagoberto, o médico, Leonard, o bombeiro, João, o farmacêutico, e Cláudio, o geólogo.

Prefeitura catatônica

Na parte que trata de João, o farmacêutico, a repórter, sem mencionar partidos políticos, descreve a acefalia político-administrativa da cidade:

‘O desamparo era a sensação dominante. O prefeito, com problemas de saúde, estava afastado do cargo. Seu grupo político é inimigo do vice-prefeito, Dermeval Barboza Moreira Neto, que, ao assumir o posto, trocou todo o secretariado. Sem saber como agir, Moreira saiu de cena. O comando da cidade foi entregue, na prática, a um forasteiro, o vice-governador Luiz Fernando Pezão.

‘Mais de 200 corpos foram resgatados nos dois primeiros dias. Mas o Instituto Médico Legal estava desativado há seis meses, por ordem judicial, por falta de condições de higiene. Os cadáveres foram levados para o ginásio esportivo de uma escola, o Instituto de Educação de Nova Friburgo’.

A descrição que se segue é dantesca.

Sem amparo, sem protesto

No capítulo dedicado ao geólogo Claudio, o texto faz uma crítica severa:

‘A chuva teve proporções inimagináveis. Mas boa parte do estrago e das mortes se deu por razões conhecidas há décadas: ocupação desordenada dos morros, desmatamento das encostas, assoreamento dos rios, falta de um plano de contingência para retirar os moradores em dias de chuva.

‘(…) Ainda que se comece agora a fazer um programa – necessário e caro – de remoção de moradores, de recuperação das encostas e de dragagem dos rios, ainda se levará meio século para que chuvas como a do último verão não provoquem tantos danos.

‘(….) Até agora, não se sabe o que fazer com os desabrigados. Em Nova Friburgo, nenhuma casa foi construída para abrigá-los. Nenhum plano de recuperação foi ainda apresentado. A economia da cidade, com as perdas da indústria, do comércio e do turismo, encolheu.

‘Ninguém, entre as dezenas de milhares de feridos, ou os 12 mil que perderam suas casas, ou os familiares dos 440 que morreram, recebeu qualquer indenização. Nenhuma autoridade foi responsabilizada ou perdeu o emprego. Não houve nenhum protesto’.