Os sócios da Ordem dos Velhos Jornalistas decerto se lembram daqueles intimoratos repórteres radiofônicos capazes de vencer qualquer obstáculo para se aproximar, microfone em punho como uma arma, do dignitário ou da celebridade que acabava de pôr os pés em território pátrio – e que, conseguida a proeza, perguntavam com voz inquisitorial: ‘O que acha do Brasil?’
Essa é uma das tradições do jornalismo brasileiro que tarda a desaparecer: empreendedor e agressivo na busca da notícia, desorientado e intimidado diante dela. Mal comparando, a mídia ainda late muito e morde pouco.
Raros, por exemplo, são os colunistas e congêneres – cuja integridade não esteja em questão – que ousam ir além do comedimento bem-comportaedo ao escrever sobre assuntos e personagens cujas características imploram por uma abordagem cáustica (à maneira, para citar o primeiro exemplo que vem à cabeça, da imperdível Maureen Dowd, do New York Times, da qual ninguém há de querer ser inimigo).
A coluna dominical ‘No Planalto’, do diretor da sucursal de Brasília da Folha, Josias de Souza, é uma dessas bem-vindas exceções. E o que ele aprontou na edição do dia 25, sob o título impiedoso ‘A verdadeira estrela do Alvorada é Marisa’, é uma lição de como se pode colher um caso conhecido – a plantação de temperos na forma do símbolo do PT –, revirá-lo por todos os lados e devolvê-lo ao leitor acompanhado de opiniões com as quais ele poderá concordar ou não, mas jamais dirá que, em relação ao tema, o autor foi menos fundo – e menos contundente – do que poderia.
Há quem julgue os textos de Josias raivosos. Este leitor acha que são indignados: exprimem um modo de reagir aos fatos sem o qual as pessoas nem deveriam pensar em ser jornalistas. A indignação do colunista tem o mérito de se apoiar em cuidadosa (e às vezes aborrecida) apurática e a vantagem de vir a público em textos bem torneados.
Irreverência vs. temor
A coluna em questão expõe as raízes das estrelas de sálvia nos jardins palacianos – sobre as quais a mídia, justificadamente, deitou e rolou, ficando, porém, na aparência das coisas.
O que Josias fez foi checar a versão oficial de que o desafortunado paisagismo foi iniciativa de um jardineiro da Novacap. Descobriu que a mãe da criança foi exclusivamente a senhora Marisa Letícia, a quem a mídia continua a chamar pela naftalínica designação primeira-dama, que provocava urticária na senhora Ruth Correa Leite Cardoso.
Postos os fatos nos seus devidos lugares, Josias tratou de destilar ironia, apoiando-se com apreciável perversidade em um artigo publicado no mesmo jornal, no dia 16, pelo ministro Luiz Gushiken, sobre jornalismo e informação em um país como o Brasil.
Há equívocos e impropriedades no texto. Com a melhor das intenções, dessa vez, Josias escreve que os canteiros são ‘nada, se comparados aos ‘coloridos’ jardins da Dinda’. Nada são, de fato. Mas as estrelas petistas foram plantadas com dinheiro público em propriedade pública. Os jardins versalhescos de Rosane Collor foram plantados com dinheiro ostensivamente privado em propriedade particular.
E embora o colunista talvez tenha um ponto quando diz, sobre a horta, que ‘o vazio administrativo deu-lhe visibilidade ofuscante’ e ‘levou-o às primeiras páginas’, não se pode tomar ao pé da letra a afirmação de que a obra é a ‘única’ do governo. Muito menos deveria ele ter chamado a equipe de Lula de ‘camarilha’ – o sarcasmo, se é disso que se trata, pode ter escapado a muitos leitores.
Na soma algébrica, antes a irreverência além da conta do que o temor reverencial aquém do interesse público.
O que daria para fazer com…
Está em qualquer manual de jornalismo: valores numéricos que não cabem na vida real do leitor – R$ 10 bilhões, por exemplo – devem ser convertidos em coisas materiais para deixarem de abstratos.
Partindo desse princípio, a imprensa inventou a variante ‘o que daria para fazer com’. Nas matérias que citam cifras astronômicas roubadas do erário, por exemplo, a tradução tem por objetivo ‘concretizar’ o dado e indignar o leitor. Como em: ‘Com o dinheiro desviado das obras do Fórum Trabalhista de São Paulo, seria possível construir x mil escolas.’
Foi decerto com esse espírito que a Folha pendurou na matéria sobre o arrocho fiscal recorde obtido em março pelo governo Lula para pagar juros – R$ 10,282 bilhões, ou 8,36% do PIB – um quadro ilustrando o que o governo poderia fazer com essa dinheirama. Primeiro de cinco itens: ‘…quase dobrar o orçamento do Bolsa-Família…’
É uma ficção. Só aritmeticamente o governo poderia fazer as coisas boas discriminadas pelo jornal com os tais R$ 10,282 bi. Na realidade, isso teria exigido a inimaginável decisão prévia de não fazer mais superávit algum – com tudo o que aí estaria implícito.
Ora, como o governo nunca pensou e não pensa em suspender o pagamentos dos juros da dívida, esse ‘o que daria para fazer com’ não tem pé nem cabeça.
No máximo, a Folha poderia ter explicado o que daria para fazer com a diferença entre o superávit apurado e o superávit que bastaria para o cumprimento da meta acertada com o FMI. No trimestre encerrado em março, a diferença, ou seja, o que o governo economizou a mais, foi de R$ 6 bi.
Sem mencionar que o quadro passa a idéia infantil de que os recursos públicos estão numa espécie de caixinha comum, da qual se pode tirar livremente tanto para isso e quanto para aquilo, e amanhã tanto para aquilo e quanto para isso, como se não existisse orçamento.
Ameaça misteriosa
Numa entrevista ao Estado, tratada com destaque na edição de sábado, 24, o presidente da CNBB, d. Geraldo Majella Agnelo, advertiu que a Lei 9.840, o mais avançado instrumento contra a corrupção eleitoral que se tem no Brasil, está ameaçada por dois projetos no Senado em benefício, segundo ele, de ‘políticos que cometem o crime de compra de votos’.
A advertência está no subtítulo da matéria e ocupa quase todo o lide. Muito justo. O jornal só não informou o que dizem, de quem são, em que pé estão e que chances têm esses projetos ameaçadores. [Textos fechados às 14h20 de 26/4]